Roma, 14/15.10.1965203
35ª Circular
À querida Família Mecejanense,
Vigília em louvor de Santa Tereza e nas intenções especiais da querida Nina.
Se eu fosse o Santo Padre Paulo VI, nesta altura do Concílio (Padres Conciliares precisando descanso; a Grande Assembleia precisando de dispor-se, em definitivo, para a arrancada final e o após-Concílio) obrigaria, amavelmente, todos os Bispos a ir ao cinema e embeber-se do espírito de MARY POPPINS204.
Que imaginação privilegiada a de Walt Disney! Os anos se passam e a fonte criadora não se esgota… Deus lhe dá o dom de por na tela tudo o que a gente sonha, tudo o que de mais belo e mais incrível a gente imagina fazer. E que pureza de sentimentos, que leveza de coração!
Filme-teste de sensibilidade. Quem não o entender, quem não sair da sala de projeção se sentindo melhor (com desejo de ser bom, sentindo a Criança rindo e cantando dentro de si), então, trate de uma revisão de vida, em profundidade: o aviso de Cristo quanto à necessidade de fazer-se Criança para entrar no reino do Céu, anda pouco atendido e exigindo atenção.
Mary Poppins… e também Frank são da família espiritual do Petit Prince205, de São Francisco de Assis. Quintessência do espírito evangélico.
Não estou esquecido que o argumento vem da Inglaterra. Mas como o Cinema o transfigurou, com os recursos mágicos de Walt Disney, que sabe combinar, como ninguém, a vida natural e a dimensão enriquecedora dos desenhos animados!…
Julie Andrews, após 2 anos de sucesso na Brodway, sofreu a humilhação de ser preterida na hora de My fair lady passar do palco para a tela. Imagine-se o desapontamento dos que a preteriram quando Julie, no festival, com Mary Poppins arrebatou 5 Oscars… Venceu no Cinema como vencera no Teatro. E ainda vem a Noviça rebelde, nova versão da Família Trapp.
Além do mais, não lhe faltou a colaboração excepcional, entre outros, de Dick Van Dyke e de duas crianças brejeiras que tomam conta da gente.
Já sei, já sei… já sei! Filme não se conta… Mas vão aprendendo desde já a palavra mágica, difícil de dizer, mas espanta-tristeza:
SUPERCALIFRAGILISTICEXPIRALDOSO [fl. 2]
Vão ensaiando a castanhola que a Garotinha aprendeu em dois tempos e o Garoto ficou em tempo grande sem aprender… Verão, então, a delícia que se torna qualquer trabalho. Verão por exemplo, como se arruma um quarto, por mais confuso e baralhado que ele se encontre…
Precisamos todos, na hora do cansaço, aprender a dizer Hopola como Mary (este avante, nos lábios dela, recorda, ao vivo, o Coraggio do Papa João).
Precisamos aprender como se sobe escada, sem o mais leve cansaço e como sempre sonhei subir! Como se transforma o mais incrível dos remédios na bebida mais deliciosa que se possa imaginar (além do mais, colorida e bela, como os remédios que Stella206me arranja…).
Tenho medo de ironia. Walt Disney, consegue uma ironia amável em cima dos Banqueiros de Londres (até lembra o 4º planeta visitado pelo Petit Prince). Duas crianças fazem estremecer as finanças da Inglaterra! E que símbolo extraordinário ficam sendo os humílimos 2 pence!…
Será que alguém na vida é tão pobre de imaginação, tão sem riqueza interior que jamais tenha sonhado andar por cima dos telhados (sempre sonhei disparar pelas montanhas, subindo-as e descendo-as de um fôlego só…), usando inclusive, a mais inesperada das escadas e usando a sombrinha em sua verdadeira e profunda função como Mary e Frank ensinam a fazer!? Será que alguém passa por esta terra e jamais passa uma tarde encantada em um Parque de diversões, dançando com os pinguins, os esquilos, os coelhos, a Corça!?… “Como é bom andar junto com Mary Poppins” – quem não guarda a música no ouvido, se todos a cantam, até o boi, até o porco!…
O que não consegue a bondade!… Os pássaros vêm acompanhar as canções de Mary! As tartarugas servem-lhe de ponte móvel e deliciosa… Os cavalinhos do Carrossel a tornam invencível em qualquer corrida do Jockey.
Aliás, repito que o Frank não fica atrás: reparem, quando forem ao filme, quanta verdade e beleza ele põe no falar aos filhos sobre o pai e ao pai sobre os filhos… Como sabe ser companheiro admirável dos limpadores de chaminé, com quem dança maravilhosamente!…
Já é mais do que tempo de apresentá-los a vocês: falo sobre Mary, falo sobre Frank e nada de fazer com que eles mesmos conversem com vocês. Ei-los aqui: [fl. 3]
Meu Deus! Será que eu contei o filme ou apenas fiz-lhe a propaganda!?… Fico tranquilo: nem toquei no enredo!…
Aprendam como a alegria nos torna leves e como a tristeza nos faz descer e nos amarra no chão… Quem não vai querer uma bolsa como a de Mary Poppins!?…
Nela, como no Petit Prince, é uma delícia a maneira gozada de deixar a gente sem resposta.
O principal é incontável. Só vendo. Só ouvindo. Só sentindo. O ritmo. O colorido. A poesia. A música.
Bilhete de criança não se rasga! Aliás não adianta rasgar ou procurar queimar: ele se recompõe e cai direitinho nas mãos de Mary…
Que lição de bondade e de superação de egoísmo! Que banho de infância! Que mergulho no Evangelho!…
Bênçãos saudosas do Dom
203Madrugada de sexta-feira.
204O entusiasmo de Dom Helder pelo filme foi tão grande que, pela primeira e única vez, em toda a coleção das Circulares, ele colou, na folha 3 dessa Circular, o recorte de uma imagem sobre o filme.
205Pequeno Príncipe, personagem da obra homônima de Antoine de Saint-Exupéry.
206Stella Cabral de Melo, esposa do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto. O casal residia em Genebra, onde o poeta era conselheiro da Delegação do Brasil junto às Nações Unidas.