Memória em Palavras: Lendo O Volume V Das Cartas Circulares De Dom Helder Camara.
Eduardo Hoornaert.
&&&&
Aos 62 anos, Helder Camara muda de rumo.
Ao folhear o volume V das Cartas Circulares de Dom Helder Camara, escritas entre 31/01/1970 e 17/05/1971, dá para perceber uma aparentemente discreta, mas persistente e crescente guinada na percepção do método a ser seguido nos trabalhos de evangelização, por parte do bispo. Talvez seja exagero falar aqui, de pronto, de uma passagem entre o recurso ao ‘poder da maioria’ ao recurso aos ‘poderes de minorias’, mas – afinal – é isso que se vislumbra. Quem presta atenção aos cabeçalhos das Cartas, poderá constatar uma evolução nessa direção. Ao longo do ciclo em torno do Concílio Vaticano II, até o final do ano 1969, os cabeçalhos evocam invariavelmente esse grande acontecimento eclesiástico: Cartas Conciliares, Interconciliares, Pósconciliares. Mas, já em meados do ano 1968, aparecem termos como Pressão Moral Libertadora, Ação Justiça e Paz, Movimento mundial de opinião pública (Carta de 05/07/1969) e Não-violência ativa. Figuras como Gandhi e Martin Luther King (assassinado em 1968) entram em cena. Faz-se alusão a comunidades não geográficas e criticam-se instituições como instituições.
O que Dom Helder quer dizer com essa última expressão? A Carta de 05/04/1971 explica: instituições como instituições (universidades, igrejas, imprensa, empresas, sindicatos de trabalhadores), presas aos dólares do poderio econômico, dificilmente mudarão as coisas. Sei que, sem dinheiro, será dificílimo (alguém dirá: impossível) descobrir, fazer trabalhar e interligar as minorias abraâmicas. Observe que aparece aqui, como se fosse natural, a expressão ‘minorias abraâmicas’. Mais adiante explico a coisa, mas aqui me limito a lembrar que essa referência a ‘instituições como instituições’ tem a ver com as frequentes viagens ao exterior, realizadas pelo bispo desde o final do Concílio em 1965. Nessas viagens, Helder se defronta com uma juventude universitária momentaneamente entusiasmada. Mas é um fogo de palha. Como atiçar esse fogo?
Helder está com 62 anos de vida. Ele já mudou diversas vezes o rumo de sua atuação. Em 1936, ele deixa sua cidade natal Fortaleza e se muda para o Rio de Janeiro, onde descobre o valor da democracia e passa a relativizar a ideologia do desenvolvimento; em 1955, as palavras de um cardeal nele provocam a irrupção do evangelho; em 1964, o endurecimento do regime militar faz com que ele assuma uma postura de resistência política e, depois de 1965, as viagens internacionais fazem dele uma figura mundialmente reconhecida. A guinada de 1971 vem completar essa sequência de mudança de foco e de ação, como se verifica lendo o volume V das Cartas. Pode-se dizer que, em 1970, Helder ainda sonha com união de universidades católicas, por exemplo, diante do entusiasmo do momento. No ano seguinte, já em janeiro, ele não pensa mais assim. Ele supera a ideia de ‘sociedade cristã’.
&&&&
O poder da maioria não muda as coisas.
É por volta de 1971 que Helder descobre um defeito que acompanha as realizações da tradição cristã católica ao longo de muitos séculos. Desde o momento em que ela deixa de trabalhar com minorias e passa a dividir o ‘universo cristão’ em ‘dioceses’, ela passa a pretender controlar a sociedade como um todo. Aí, ela adota o que se pode chamar de ‘princípio consenso’. Introduzida entre os séculos IV e XIII, esse princípio resulta em projetos organizatórios que se assentam basicamente no consenso, ou seja, na ordenação de uma unanimidade. Aliás, é a partir de um pressuposto consensual que emerge a própria igreja autodenominada ‘católica’, ‘espalhada pela terra inteira’ (kath’ holèn gèn, em grego), ‘ecumênica’ (oikoumenè: por onde se encontrem ‘casas’), centrada numa dogmática universalmente estabelecida. Um consenso fundamental que distingue entre forças ‘ortodoxas’ e forças ‘heréticas’. Pensando bem, trata-se dos inícios de um processo de transformação da mensagem evangélica em doutrina, um processo de séculos, marcado pelo princípio consenso.
O executor do projeto consensual é o clero, que com o tempo consegue subordinar todas as forças culturais sob sua égide. Um sucesso espetacular, que basicamente se deve à utilização de imagens e símbolos, assim como à manipulação de emoções e sentimentos. Elaboram-se imagens que impactam as massas camponesas e fazem com que se formem, com o tempo, grandes conglomerações de pessoas a se comprimir em imensas igrejas e catedrais (que, por vezes, têm a capacidade de conter mais que a população inteira da localidade), a frequentar locais de devoção, empreender romarias a Roma e Santiago de Compostela etc. Por volta do século XIII, o sistema é tão forte que passa a se retroalimentar. As próprias massas passam a reproduzir o consenso, por meio da educação familiar e do convívio na comunidade paroquial.
O princípio consenso tende a descambar para o autoritarismo e não raramente exime as pessoas de um sentimento de responsabilidade diante de decisões tomadas por uma maioria: o que for decidido por todos, afinal, não é da responsabilidade de ninguém em particular. A pessoa pode se esquivar dizendo que está em consonância com a maioria e desse modo não assumir uma responsabilidade pessoal. Ela passa a se submeter a uma lógica externa, agir como mera engrenagem num sistema considerado válido, não se interrogar sobre o impacto concreto de uma decisão tomada em consenso. Desse modo se perpetuam injustiças sistêmicas. O princípio consenso passa a funcionar, então, como um mecanismo puramente técnico, burocrático, auto-propelido.
Como remover esse bloco histórico de imenso peso? É uma luta de Davi contra Golias. Helder, ao sentir – de um lado – o perigo representado pelo princípio consenso e – de outro lado – perceber que fica difícil enfrentar a questão diretamente, propõe uma mudança de rumo no melhor estilo eclesiástico. Ele muda sem dar a impressão. É assim que, sem fazer alarde, ele lança a ideia de ‘minorias abraâmicas’, que constitui uma fundamental mudança de rumo, de efeitos imprevisíveis. A partir do início de 1971, ele prepara cuidadosamente o terreno. Novas palavras de ordem aparecem, novas expressões: família abraâmica, espírito abraâmico, pastores abraâmicos, esperança abraâmica, etc. Helder até pensa em escrever um livro sobre o tema, na linha de seu Spirale de la violence de 1971.
Por que Abraão? Para Helder, esse nome simboliza posição de minoridade. Abraão não é como Moisés, líder do povo, que escapa do cativeiro egípcio e dirige os hebreus durante quarenta anos pelo deserto, em marcha para a terra prometida. Abraão é minoridade, ‘resto de Israel’, resistência. A figura representa homens e mulheres que não se preocupam a difundir uma religião ou alguma sabedoria superior, mas que constituem o prenúncio de uma nova humanidade, baseada na fé, na esperança e no amor. Eis o que Helder intui.
&&&&
O poder de minorias.
Tudo isso resulta na fenomenal eclosão da proposta de minorias abraâmicas nas nove primeiras Cartas de janeiro do ano 1971 (as páginas 01-39 de Tomo III do Volume V). Páginas que merecem ser lidas e relidas. Aí, a proposta se desfralda em detalhes. Em vez de pensar em grandes ‘instituições'(Conferência Nacional dos Bispos, CNBB; Conselho Episcopal latino-americano, CELAM; Conselho Latino-americano de Religiosos, CLAR, etc.), Helder passa a animar grupos pequenos, ‘minorias abraâmicas’.
Passagem do poder da maioria ao poder de minorias, pressão moral libertadora, não-violência ativa, comunidades de base, pequenas comunidades. Eis o desafio que Dom Helder Camara nos lança. Um desafio para valer.