Causos do Dom: Uma Igreja e uma Casa: Residência e Resistência
Prof. Martinho Condini
Quando Dom Helder chega a Recife em abril de 1964, confessou aos amigos mais íntimos, era sua vontade “libertar o Palácio Episcopal de sua denominação de palácio e do seu ar de palácio”. Pretendia se desfazer ainda dos dois tronos. “Para que museu os levar? Reconhecendo que eles são o símbolo de um passado morto e enterrado. “Como nos desfazer das cadeiras nobres? Reconheço que são lindas…Como nos desfazer dos tapetes… Como aproveitar da melhor maneira tantas salas vazias? ” Indagava um angustiado Helder. Decidido que “palácio não é lugar para bispos”, conversou com o padre Marcelo Cavalheira, seu vigário episcopal e reitor do seminário.
– O palácio deve ser uma casa de serviço, de atendimento aos pobres, eu quero sair com você para procurar uma casa pequena para morar, de porta e janela.
A procura começou nos bairros pobres de Recife. Inicialmente no Morro da Conceição, na zona norte da cidade. Mas a localização – naquela época ainda não existia linha de ônibus que subisse até o alto do morro – e as necessidades pastorais que exigiam do arcebispo constantes deslocamentos pela cidade, tornaram o local inviável. A busca passou, então, para o centro da cidade. Mais precisamente nas imediações do Pátio de São Pedro, ainda não transformado em ponto turístico.
O relato é do próprio Marcelo Cavalheira: “entravámos para ver. Eram casinhas atraentes para o arcebispo. Mas quando perguntávamos o que devíamos fazer para obter uma delas, percebíamos que as negociações eram complicadas. Os donos das casas de comércio das redondezas, ao perceberem a presença de Dom Helder, saíam para cumprimentá-lo.
O arcebispo informava que estava procurando uma casa para morar e era advertido dos problemas do local. Afirmavam que depois das sete horas da noite o movimento era grande, as calçadas ficavam cheias de prostitutas e se ouviam palavrões a cada passo. Ele retrucava logo: “se aqui é o pior lugar de Recife, é aqui que o arcebispo deve morar”.
A escolha acabou caindo, quase por acaso, sobre uma casa nos fundos da Igreja das Fronteiras, uma construção rica em história e significado para o povo pernambucano. Durante a chamada Insurreição pernambucana (1646 – 1654), guerra que culminou com a expulsão dos holandeses, o “governador dos pretos, crioulos e mulatos do Brasil”, Henrique Dias, ergueu no local uma capelinha de taipa, sob invocação de Nossa Senhora da Assunção das Fronteiras. A atual igreja, uma construção de pedra e cal, como conhecemos hoje, foi concluída em 1748, por ordem do Rei de Portugal. Lá funcionou, por muitos anos, a sede do Regimento dos Henriques, soldados remanescentes das tropas de pretos que combateram na guerra contra o holandês invasor.
A casa nos fundos da igreja era um prolongamento da sacristia. Simples e sem conforto, como queria. Na hora da decisão pesou o fato de precisar receber, a qualquer hora do dia e da noite, pessoas de todos os recantos e de condições financeiras diversas. Afinal, um bispo devia servir a todos e, apesar do nome “fronteiras”, sua casa deveria estar sempre aberta. Uma fronteira aberta ao mundo. Era só bater na porta que o próprio arcebispo vinha abri-la. Ele mesmo, sem secretários, empregadas, porteiros. Nada!
A mudança ocorreu no início de 1968. E logo a casinha das Fronteiras, sinal evangélico de sua opção pelos pobres, passou a ser alvo dos seus ferozes perseguidores. Nas madrugadas, na solidão das vigílias, quando sempre ficava acordado duas horas por noite, orando, meditando, estudando, trabalhando e escrevendo, sofreu os maiores ataques. E outubro de 1968, quatro homens mascarados atiraram contra o muro da casa. Poucos dias depois novo ataque a tiros, assumidos por uma organização clandestina intitulada “Comando de Caça aos Comunistas”. O muro da igreja vivia pichado com inscrições injuriosas e ameaçadoras. A que permaneceu mais tempo: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Como morava sozinho, passou a preocupar cada vez mais seus amigos e colaboradores, que temiam por sua vida. Durante várias noites foi obrigado a conviver com o telefone tocando de quinze em quinze minutos. Quando atendia, ninguém respondia. Pediram que ele desligasse o telefone durante a noite, mas ele retrucava que “era possível que no meio dos chamados fantasmas viessem um SOS de alguém precisando do Pai”.
Os telefonemas ameaçadores, traiçoeiros, maldosos, com palavrões e ameaças de morte, sempre quebrando a paz das solitárias vigílias do arcebispo durante a madrugada, continuaram, mas Dom Helder jamais se intimidou com as ameaças.
FILHO, Félix. Além das Ideias: histórias de vida de Dom Helder Camara. 1ª reimpressão. Recife. Cepe. 2016. p. 58-59-60