Memória em Palavras: Poemas de Dom Helder

Memória em Palavras: Poemas de Dom Helder

Apresentamos mais um trabalho de alunos do curso alunos do curso Dom Helder Camara , Cidadão do Mundo, ministrado pelo Prof. Martinho Condini, ministrado entre novembro e dezembro de 2023.

Por Silvia Quitanilha Macedo

Apresentação

Inicialmente planejado como leitura de três artigos sobre a poesia produzida por Dom Helder Camara, esse trabalho estendeu-se um pouco mais na análise de alguns poemas, de maneira a confirmar as proposições dos dois autores em questão, Leonardo Boff e Eduardo Hoornaert. Ao levantar os temas que ambos consideram na análise dessa produção poética, verificou-se a oportunidade de examinar também o trabalho de linguagem que a certifica, isto é, refletir sobre as escolhas realizadas pelo poeta no momento de compor seu estilo pessoal como escritor.

Três ensaios

O pequeno ensaio, Dom Helder: homem inteiro e poeta, de Leonardo Boff, indica alguns traços essenciais da poética do Bispo cearense. Sobretudo em referência ao coração em comunhão com o mundo, amor incondicional às pessoas, à natureza, a Deus. “Ternura pelos pobres que abraça como irmãos e irmãs”. A ação poética ocorre conforme o artista “vibra diante da realidade”. “Capta seu lado invisível”. O entendimento do poeta como aquele que “descobre conexões surpreendentes”, orienta o texto de Leonardo Boff a seguir nessa linha que considera sobretudo “o ato de recriar o mundo a partir do coração que sente o mistério escondido nas coisas e identifica as mensagens que vêm de todos os lados”.

De acordo com tal proposta, Leonardo Boff associa os versos de Dom Helder a uma tradição poética definida pela inspiração, “que outra coisa não é senão a irrupção do Espírito dentro do mundo”. E finalmente enfatiza como característica importante dos poemas “a dimensão luminosa da vida e a ligação de todas as coisas e situações com o Eterno e o Absoluto”. E completa: “poesia e mística se confundem”. Eduardo Hoornaert assina o segundo artigo aqui apresentado: Poemas de Helder Camara: O Deus escondido. A escolha do estudo recai sobre as décadas de 1964 a 1966; a questão em foco reside na prática da meditação como fonte de inspiração poética, momento que a vigília durante a madrugada proporciona.

“A figura do Padre José(…)aparece em função dessas vigílias”.

A persona poética, figura por meio da qual Dom Helder se apresenta, Padre José surge como uma elaboração dessas vigílias, consideradas pelo articulista a maneira que Dom Helder encontrou para orientar o rumo de sua vida, no sentido de “viver dentro de Deus”. Hoornaert pode então concluir serem as vigílias fonte de considerável força espiritual.

O articulista lembra dos elementos que levam ao “mergulho em Deus”: a cana na moenda, os primeiros frutos do ano, os peixes, o reflexo da lua na água. E ainda, para concluir, afirma: “é no pobre que Deus aparece de modo mais surpreendente”.

O mesmo Eduardo Hoornaert assina o terceiro estudo examinado: Quando Helder capta a dor do mundo.

Aqui se estende o papel significativo de Padre José: “ao mesmo tempo heterônimo, interlocutor de todas as horas e anjo da guarda”, que surge principalmente à noite, nas vigílias, conforme já explicitado. Cabe a Padre José se manifestar nem sempre segundo o que se espera de uma autoridade eclesiástica. Figura iluminada e inquieta, ao mesmo tempo pessimista e entusiasta, joga com o bispo como seu duplo, “seu disfarce, sua imagem fantasiosa”, cujas “antenas sensibilíssimas, captam as mais leves ondas emitidas pela cabeça e pelo coração do Padre José” (Carta 2-3/1966, III, p.172).

Interessante que não escapa ao estudioso de Dom Helder, afinidade entre a poesia deste e uma tradição poética sua contemporânea, o que leva à lembrança de grandes poetas: João Cabral, Cecília Meireles, Ledo Ivo, Thiago de Mello. E os menos consagrados: Octávio Mora, Ferreira de Loanda.

Segue outro ponto importante observado pelo articulista: a dor do mundo, nela incluída a dor do pobre. A primeira se inscreve sobretudo entre os que pertence à classe privilegiada sob a marca da solidão, do isolamento, do individualismo, das exigências econômicas. Um cenário que se repete hoje, de extrema atualidade, já antevista por Dom Helder nos anos 60. À dor do mundo soma-se a dor do pobre.

Uma visão convergente entre os três artigos

A visão convergente entre os três artigos refere-se ao predomínio do interesse temático, isto é, a abordagem confere maior atenção ao tema dos poemas, sem que haja referência maior ao papel da linguagem. A escolha pela construção temática revela a intenção de apresentar os versos de um pensador, militante religioso que se expressa poeticamente. Portanto, compreende-se o direcionamento do olhar que incide sobre as ideias, seu conteúdo propriamente.

Ainda no plano da convergência, percebe-se a semelhança que se opera no plano temático, uma vez que ambos articulistas consideram como fundamental a tensão entre a concretude do mundo e a espiritualidade

na poesia de Dom Helder.

Boff insiste nessa tensão de modo diverso de Hoornaert, cujo interesse reside sobretudo na maneira como a figura de Padre José atua no interior da obra poética. O primeiro crítico percebe, no que denomina de “aura poética”, uma constante fusão de pares opostos que “não se contrapõem mas se compõem”. Por isso é possível extrair duas confissões de Dom Helder: Filho do Absoluto amo o relativo; ou a intenção de marchar para o eterno através do efêmero.

Ao escolher o poema que exemplifica o trânsito entre absoluto e relativo, eterno e efêmero, poesia e mística, o articulista confirma a vocação do poeta no sentido de integrar duas esferas opostas e extrair dessa síntese a força encantatória de seus versos.

Trata-se do “contraponto” que faz ao poema de Carlos Pena:

O que há de bom por aqui

na terra de não chover

é que não se espera a morte

pois se está sempre a morrer.

Dom Helder responde, confirmando uma escolha diversa ao que desagrega, escolhendo antes o que integra,

sempre em busca de uma síntese harmoniosa, que traduz o sentimento de esperança e fé na transcendência.

Sempre a morrer e sempre a nascer…

Cada dia que passa,

Cada sol que se põe,

Cada despedida

São sinais de terra próxima

De desembarque à vista.

Uma análise estilística: diálogo com o artigo de Leonardo Boff

O poema acima evidencia a proximidade semântica entre nascer e morrer, por meio do advérbio sempre que acompanha os dois verbos, bem como o pronome “cada”, que inicia os três versos centrais do poema, construção paralelística que reforça o sentido comum da vida e seu movimento de passagem.

A palavra sinais que carrega, ou melhor, sintetiza o sentido de término, quando associado à terra, distancia-se fortemente do emprego negativo e sombrio daquele que Pena emprega. A ideia de viagem confirma-se com o emprego dos termos desembarque à vista, em construção paralela com terra próxima, adjetivo cujo sentido aqui, dá uma dimensão espacial, indicativa de algo perto, o que talvez convide a pensar numa situação de acolhimento. Volta-se ao verso inicial: Sempre a morrer e sempre a nascer para confirmar a natureza luminosa do movimento que define a vida e a morte, numa dinâmica cíclica, que se repete, e nunca acaba.

Quase ao término do artigo, Leonardo Boff confirma a ênfase no universo antitético das construções presentes nos poemas, ao lembrar que “Luz e sombra são também complementares no ser e na missão. O sol ilumina e aquece”. A sombra promove o descanso.

Ao encerrar seu estudo, o autor conclui com a ideia muito pertinente segundo a qual “poesia e mística se fundem… [sob ação] do Verbo eterno”. E cita Dom Helder: “Quando parece que afinal chegou o fim aí se abre

o verdadeiro início”. E para tal, as palavras ganham voz, transformada em “música, entendimento, harmonia”.

A estratégia do poema: o Deus escondido.

Para demonstrar o tema do Deus escondido, na vigília poética de Padre José, Eduardo Hoornaert faz uma seleção de poemas que exemplifica a dinâmica do encontro entre a figura do eu lírico e a presença divina. No bloco de versos a seguir, verifica-se uma construção cindida, na qual se apresenta inicialmente a condição do eu, ficando para os últimos versos o papel de revelar a dependência essencial à presença divina.

Em termos estilísticos, há vários índices que confirmam essa condição que estabelece uma junção entre divino e humano, na qual se humaniza o divino e diviniza-se o humano. O uso de certos verbos, por exemplo, dá a medida desse encontro, sempre no sentido do esforço, da implicação de gestos fortes, de movimento vigoroso: mergulhando, entra, não pares, arrancar-me, conforme exemplifica a sequência dos poemas aqui reunidos, a partir daqueles selecionados pelo articulista.

A esfera divina finaliza, de modo conclusivo, um encadeamento narrativo. A numeração dos poemas ocorre para efeito de ilustração; o paralelismo do primeiro poema finaliza com o verbo rezando; número 2: Sê um comigo,/No Cristo ; 3- Escuta a voz/Do filho muito amado;4- Surpreenderes/ Quem mora comigo; 5- Que o meu brado/É eco de Tua sua voz; o poema 7 é praticamente divido ao meio, quanto à organização que acerta de um lado aspectos relativos ao eu, e de outro, ao divino.

Além do paralelismo, da repetição, ainda com vista ao modo como combina essa junção entre humano e divino, considere-se o diálogo(Se me queres entender; Se quiseres apanhar; Podes rir),o chamamento e mesmo o mando(Entra em mim; Não pares) A interlocução aqui se dá entre o pregador e seu ouvinte, com o uso da segunda pessoa (tu), o que estabelece uma relação menos pessoal, mais cerimoniosa. Os pronomes de primeira pessoa se expressam com frequência: me queres; em mim; um comigo; meu rosto; minha voz, testemunhando o embate do pregador em direção ao fiel.

Interessa evidenciar a condição corpórea do interlocutor: meu rosto, minha voz, mencionados duas vezes;

Para além do corpo/Flagrantes da alma, termos igualmente repetidos e fundamentais no arranjo que orienta o poeta, no sentido de fazer encontrar humano e divino.

Esse bloco analisado reflete o apelo sempre no sentido de trazer o interlocutor para junto, ao mesmo tempo para além da figura humana que o eu representa. É a interioridade lírica que abriga o divino: Sê um comigo/No Cristo. Trata-se de um ponto específico: para além do corpo e da alma/Surpreenderes/Quem mora comigo.

Outro conjunto de poemas são reveladores do outro modo como se desenvolve o tema do Deus escondido.

Nesse segmento, a relação entre o eu lírico e a presença divina confirma o desejo de dialogar já verificada, momento em que o poeta quer trazer o outro para junto de si, pois nele habita a transcendência. Ocorre, no entanto, uma mudança de interlocutor, agora figurado na própria divindade.

No poema 6, a voz que fala assume a irremediável dependência, pois que considera não haver outra saída senão àquela imposta por quem tem o poder da criação. Deve-se a existência ao poder criador de Deus, uma condição que se torna possível justamente pela internalização do criador na criatura: Já que estás em mim/No mais íntimo de mim mesmo. Trata-se de um fato que retira do humano qualquer outra possibilidade de existir, a não ser àquela imposta por uma determinação que o transcende. Daí o uso do verbo: Obriga-me. E da justificativa que segue: a ser/Como me entreviste. O tom mais narrativo dos poemas anteriores ganha outra dimensão, mais reflexiva.

A partir do poema 5 até o 9, a ênfase reside na comunhão absoluta entre o poeta e Deus. O modo como ela ocorre confirma o humano, sobretudo pelo destaque ao corpo, partes dele, e à interioridade do eu: o meu brado/é eco de Tua voz; Já que estás em mim/No mais íntimo de mim mesmo; Quem, dentro de mim; És Tu, meu Deus Uno e Trino, /Que amas teu universo/Através de minhas entranhas.

O poema 9 exemplifica claramente o que até agora vem se mostrando, isto é, a conformidade de posicionamento entre a esfera do humano e a do divino, disposição que funde numa mesma unidade essa duas partes: Aqui estou,/Diante de Deus,/Dentro de Deus

Os poemas selecionados

1-Caminhar pelas ruas de Nova Iorque

Contemplando os Anjos

Contemplando o povo

Mergulhando em Deus

E rezando (Circular 3-4/2/1965, II, II, p. 158).

2-Se me queres entender

Só há um remédio:

Entra em mim,

Sê um comigo,

No Cristo (Carta Circular 22/08/1966, III, II, p. 146).

3-Não pares

Em meu rosto de pecador

Em minha voz de pecador.

Descobre o rosto

Escuta a voz

Do Filho muito amado (Carta Circular 5/08/1966, III, II, p. 117).

4-Se quiseres apanhar

Para além do corpo

Flagrantes da alma,

Ainda ficarás

Muito na superfície.

Te chamarei fotógrafo

Se, para além do corpo e da alma,

Surpreenderes

Quem mora comigo (Carta Circular 13/03/ 1966, III, I, p. 190)

5-Quando Te chamo

Descubro, feliz,

Que o meu brado

É eco deTua voz (ibidem, p. 385).

6-Já que estás em mim

No mais íntimo de mim mesmo,

Obriga-me a ser

Como me entreviste

Em teus planos divinos

Ao arrancar-me do nada (ibidem, p. 391).

7-Podes rir,

Podes gargalhar.

Nem imaginas

Quem, dentro de mim,

Ultrapassa os limites,

Rompe as barreiras,

Atinge as dimensões de Deus (Carta Conciliar 7-8/3/1964, I, I, pp. 412-413).

8-És Tu, meu Deus Uno e Trino,

Que amas teu universo

Através de minhas entranhas (Carta Circular 18/04/1964, II, I, 20).

9-Aqui estou,

Diante de Deus,

Dentro de Deus (Carta Circular 28/02/1965, II, II, p.222).

Considerações finais

A leitura dos três artigos mostra a importância de divulgar a produção poética de Dom Helder, no sentido de melhor difundir a extensão de sua obra, bem como incluir seus poemas no conjunto da produção literária brasileira, de modo a considerá-los como exemplo de criação artística de caráter religioso e missionário, empreendida a partir de um domínio seguro dos meios expressivos, ao longo dos anos 60 e 70, período trágico de nossa história, em que o Brasil viveu uma ditadura militar.

A força desses versos converge, conforme explica os dois articulistas, em direção à poesia e à mística, sempre concebidas conforme o desejo de converter, de conduzir ao domínio de Deus. Pode-se ouvir a voz do poeta seu chamamento, uma convicção que rompe limites, sobretudo aqueles relativos ao humano. Traduzida em termos de linguagem, o poema explora recursos estilísticos capazes de fazer soar o apelo do eu lírico, por meio de uma simplicidade construída. A oralidade, o despojamento dos vocábulos, a organização vigorosa do pensamento empenhado em fazer valer a intenção catequista, soma-se a expressão do sentimento, o que dá ao conjunto uma clareza de entendimento associado à emoção. De modo que se pode concluir que os poemas conseguem se destacar quer como peça de oratória, que visa ao convencimento do leitor, quer como tecido poético, portanto, dentro do domínio artístico.

Indicação bibliográfica.

BOOF, Leonardo. Dom Helder: homem inteiro e poeta. Núcleo de Memória da PUC-Rio http://núcleo de

memória.vrac.puc.-rio.br…PDF.s/d

HOORNAERT, Eduardo. Poemas de Helder Camara: O Deus escondido.

Estrelacosdocoraçao.com.br.jan.2020.

– . Quando Helder capta a dor do mundo. www. Teologianordete.net. fev.2020

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