O Concílio Vaticano II foi o mais importante acontecimento da Igreja católica no século XX. Neste artigo, tenho como objetivo fazer uma apresentação concisa da participação de Dom Helder no Concílio, e como esta influenciou suas ações como arcebispo na arquidiocese de Olinda e Recife, entre os anos de 1964 a 1985, período que coincide com o governo militar no Brasil.
A Igreja Católica no Brasil, por meio dos seus membros na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), teve uma destacada participação no Concílio. Dom Helder foi o religioso brasileiro que mais se destacou, principalmente nos bastidores do Concílio. É importante destacar que ele não fez nenhum pronunciamento nas plenárias conciliares durante todo o Concílio. Com vasta experiência no campo pastoral e nos trabalhos sociais realizados, principalmente na arquidiocese de Olinda e Recife, somado ao seu posicionamento no Concílio, ele contribuiu para uma renovação da Igreja no Brasil e na América Latina, caracterizada pela construção de uma Igreja que fez a sua opção pelos pobres.
Desde o início de 1959, quando foi anunciada a realização do Concílio Vaticano II, Dom Helder nutria uma grande esperança, sonhos e projetos para a construção de uma igreja mais ecumênica e evangélica, mais comprometida com os pobres e envolvida com o desenvolvimento das nações mais pobres, bem como a compreensão e diálogo entre o hemisfério norte e sul do planeta e a promoção da paz mundial.
Durante os quatro anos do Concílio Vaticano II (1962-1965), Dom Helder foi fraternalmente chamado pelos companheiros do episcopado de ‘Dom’. Ao chegar ao Concílio, Dom Helder era um quase desconhecido bispo auxiliar do Rio de Janeiro, que irá se transformar num dos protagonistas mais influentes da história da Igreja Católica no Brasil e no exterior na segunda metade do século XX. Um dos legados do Concílio deixados por Dom Helder foram as duzentas e noventa e sete cartas escritas por ele, no período em que se realizaram as quatro sessões do Concílio. Pode-se dizer que era o seu diário do Concílio. Essas cartas eram enviadas àqueles que foram seus colaboradores no Rio de Janeiro desde a década de 40. E aos seus colaboradores em Recife, após sua transferência em 1964. As originais dessas cartas estão depositadas na fundação “Obras de Frei Francisco”, no Recife. Elas foram publicadas na obra ‘Dom Helder Camara, Obras Completas’, Vol. I, em Recife, pela Editora Universitária UFPE em 2004.
Conforme informações do jornalista francês, José de Broucker, biógrafo de Dom Helder, em seu livro As noites de um profeta, ao pegarmos as grandes obras que tratam do Concílio Vaticano II: História do Concílio Vaticano II, organizada por Giuseppe Alberigo; Um diário do Concílio, de Yves Congar e nas Atas e atores do Vaticano II, de Jan Grootaers; o nome de Dom Helder aparece apenas em quarenta e cinco páginas dentre as quatro mil páginas que foram escritas.
Estes números não refletem, a importância que o episcopado latino-americano exerceu no Concílio, principalmente, a atuação de Dom Helder, secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, e um dos responsáveis pela CELAM, Conferência Episcopal Latino Americana. Na época do Concílio, o Pe. Caporale, jesuíta e sociólogo americano, em sua obra Os homens do Concílio, afirmou sobre Dom Helder, “esse homenzinho afável e sorridente, que surpreendia os observadores não precavidos, por sua simplicidade [era] um dos mais notáveis organizadores de todo o episcopado católico” (BROUCKER, 2008, p.44).
Além da facilidade que Dom Helder tinha em organizar grupos, com intuito de debater e discutir sobre os temas abordados no Concílio, ele também se destacava como conscientizador, mobilizador, coordenador, aglutinador e articulador entre os bispos presentes no Concílio. O seu interesse era abrir espaço para o diálogo e cooperação entre os países desenvolvidos industrializados e os países subdesenvolvidos fornecedores de matéria prima. Com isso, aproximou os episcopados da África e da Ásia com a América Latina, para que pudessem juntos propor temáticas de interesse ao Terceiro Mundo [1].
A destacada presença de Dom Helder durante o Concílio, se justifica pela sua presença em grupos informais de trabalho, criadas por ele com a ajuda de outros padres conciliares, como também criada por outros padres, com sua efetiva participação. O objetivo desses grupos era fazer com que as conferenciais episcopais se reunissem para trocar experiências, ideias teológicas, estabelecer uma relação entre si, propor iniciativas e fazer encaminhamentos para o Concílio. Uma das experiências mais bem sucedidas foi o “Grupo da Domus Mariae”, nome do colégio onde se hospedavam os padres conciliares brasileiros e realizavam-se as reuniões do grupo, que tinha a presença de conferências episcopais de todos os continentes.
Nas reflexões do grupo Domus Mariae, havia a presença de um grupo de renomados teólogos e especialistas, denominados “Opus Angeli”, que auxiliavam os bispos, principalmente os brasileiros, nas sessões do Concílio e nos intervalos, com textos e intervenções a serem lidas na Basílica de São Pedro. A constante presença desses teólogos no Domus Mariae e em contato com os padres conciliares brasileiros, fez com que ao final do Concílio Vaticano II, a conferência episcopal brasileira fosse a mais bem preparada para executar as decisões estabelecidas no encerramento do Concílio Vaticano II em 1965.
Sobre o grupo “Domus Mariae” Dom Helder afirmou: “Os encontros não oficiais, nos quais os bispos de todos os continentes se encontraram e conversaram fraternalmente, são tão importantes quanto os debates formais na Basílica” (ARAUJO, 2012, p.107).
Em seu artigo Dom Helder Camara e o Concílio Vaticano II, o Pe. José Oscar Beozzo afirma que: “Na pesquisa de Caporale, um jornalista norte-americano que tenta levantar, durante a segunda sessão (1963), as figuras mais influentes do Concílio, Dom Helder surge no grupo das dezoito personalidades de proa e o grupo da Domus Mariae , como o mais significativo” (BEOZZO apud ROCHA, 1999, p.105).
A sua participação também foi ativa em outro grupo que ajudou a criar durante o Concílio, denominado “igreja dos pobres”, onde havia com ele mais oito brasileiros, num total de oitenta e seis padres conciliares. A proposta eclesial do grupo era “Por uma Igreja servidora e pobre”. Sobre esta expressão, comenta Dom Helder: “Agrada-me muito aquela expressão que vem dos nossos irmãos franceses: “A Igreja servidora e pobre”. O Espírito Santo nos interpelou, convocou-nos e abriu nossos olhos sobre o dever dos cristãos, mas, sobretudo dos bispos, de fazer como Cristo, que pertence a todos aqueles que sofrem. Começamos a procurar de que modo a Igreja, mas antes de tudo cada um de nós, pode ser ‘servo e pobre’” (CAMARA, apud ARAUJO, 2012, p. 108).
O grupo “igreja dos pobres” estava afligido com a miséria da maioria da população mundial e preocupado em encontrar soluções para erradicar a pobreza e o abandono. Para esse grupo era de fundamental importância que o comprometimento da Igreja com os pobres estivesse registrado em todos os documentos conciliares.
Este grupo assinou o “Pacto das Catacumbas”, ao final do Concílio, na Catacumba de São Calisto, documento este que Dom Helder Camara teve uma significativa participação em sua redação. O texto estabelece uma série de práticas e compromissos que são assumidos na vida cotidiana e na caminhada dos cristãos comprometidos com uma Igreja servidora e pobre: vida pobre e com dedicação aos pobres. Apesar do grupo não conseguir decolar as suas propostas no decorrer do Concílio, o Pacto das Catacumbas despertou reflexões e uma grande repercussão profética e espiritual.
Para Dom Helder estava claro que a proposta da criação da “Igreja dos Pobres”, tão desejada pelo papa João XXIII não havia prosperado no Concílio. Por isso, atuou com tanto empenho nos grupos “Domus Mariae”, “Igreja dos Pobres” e no “Pacto das Catacumbas”, para que, na América Latina e no restante do Terceiro Mundo, a criação da “Igreja dos Pobres” se tornasse a questão eclesial a ser alcançada.
Ao perceber que o Concílio não respondera às necessidades e expectativas do Terceiro Mundo, e mais especificamente à América Latina, Dom Helder, após o seu término procurou o papa Paulo VI. Em uma audiência particular, ele propõe ao papa que escrevesse uma encíclica sobre a importância do desenvolvimento dos povos. Nesta conversa o papa houve do seu amigo, Dom Helder Camara: “O desenvolvimento é o novo nome da paz” (BARROS, 2011, p. 158). E também, que esse documento atingisse o mundo desenvolvido, afim de percebessem que o problema da miséria e do subdesenvolvimento é um problema que afeta toda a humanidade. Em 1967, a encíclica Populorum Progressio[2]estava consolidada. Atribui-se a Dom Helder a inspiração para a redação de tal documento.
Para Dom Helder, a consolidação dessa encíclica garantia as discussões das propostas não aprovadas no Concílio e que estavam atreladas aos interesses do grupo da ‘Igreja dos Pobres’. Por isso, as conferências latinoamericanas realizadas pelo CELAM, nas décadas de 60 e 70, Medellín (Colômbia), Puebla (México) e São Domingos (São Domingos) foram fundamentais para que as práticas de ‘Igreja servidora e pobre’ idealizada no Concílio fosse colocada em prática na América Latina e em outros países do Terceiro Mundo. Dom Helder escreveu no número 15 do documento 5 da Conferência Episcopal Latino Americana em Medellín:
Que se apresente cada vez mais nítido, na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação de todo o ser humano e de toda a humanidade (Medellín 5,15 apud BARROS, 2011, p.158)
A postura de Dom Helder perante o Concílio – a opção preferencialmente pelos pobres – o acompanhava desde os seus trabalhos no Rio de Janeiro. Acentuou-se ainda mais a partir do seu episcopado à frente da arquidiocese de Olinda e Recife, durante a ditadura militar, e após a sua aposentadoria até a sua morte em 1999, em Recife.
Enfim, a atuação de Dom Helder Camara nos bastidores e nos grupos formados no Concílio, influenciou na ampliação da opção preferencialmente pelos pobres em outros episcopados, na América Latina e outros países do Terceiro Mundo. A sua ação pastoral também estimulou reflexões teológicas e possibilitou a produção de uma teologia da libertação colocada em prática na América Latina, e que irá transformar as relações da Igreja com a sociedade. Em sua caminhada, Dom Helder exerceu um papel fundamental para o povo e para a igreja, foi um homem e religioso de pensamento e atitudes, um profeta da libertação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO. Edvaldo Manoel de. Dom Helder Camara: Profeta-peregrino da justiça e da paz. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2012.
BARROS, Marcelo. Dom Helder Camara, profeta dos nossos dias. São Paulo: Paulus, 2011.
BARROS, Raimundo Caramuru; OLIVEIRA, Lauro de. Dom Helder: o artesão da paz. Brasília, DF: Senado Federal, 2000.
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil. De João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
________. Dom Helder Camara e o Concílio Vaticano II, in ROCHA, Zildo (org.). Helder, o Dom: uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. p.102 – 110.
BROUCKER, José de. As noites de um profeta: Dom Helder Camara no Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2008.
CAMARA, Helder. Quanto mais negra é a noite, mais carrega em si a madrugada. Entrevista a Divane Carvalho, Jornal do Brasil, sucursal Recife. Recife, PE, 24 abr. 1977. In.: Secretaria Regional Nordeste II, CNBB, apostila 44. 6 fls. (mimeo.)
CONDINI, Martinho. Dom Helder Camara: um modelo de esperança. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2009.
________. Educar para a liberdade: a construção da educação libertadora de Dom Helder Camara à luz da pedagogia freireana. Tese (doutorado) – Programa de Pós Graduação Educação: currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2011.
DUSSEL, Enrique. Caminhos de libertação latino-americana – Tomo I: interpretação histórico-teológica. São Paulo: Paulinas, 1985.
KLOPPENBURG, Boaventura (org.). Pacto das Catacumbas. Concílio Vaticano II: vol. V. Petrópolis: Vozes, 1966. p. 526-528.
MATER ET MAGISTRA. Evolução da questão social à luz da doutrina cristã. Carta Encíclica de João XXIII, publicada em Roma em 15 de maio de 1961. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater_po.html. Acesso em 02.08. 2012.
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara: o profeta da paz. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
[1] Terceiro Mundo é um termo da Teoria dos Mundos, originado na Guerra Fria (1945-1991), para descrever os países que se posicionaram como neutros na Guerra Fria, não se aliando nem aos Estados Unidos e os países que defendiam o capitalismo, e nem à União das Repúblicas Socialista Soviéticae os países que defendiam o socialismo. O conceito mais amplo do termo pode definir os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, ou seja, os que possuem uma economia e/ou uma sociedade pouco ou insuficientemente avançadas.
[2] Populorum progressio (Progresso dos povos) é uma encíclica escrita pelo Papa Paulo VI e publicada em 26 de março 1967. A encíclica é dedicada à cooperação entre os povos e ao problema dos países em desenvolvimento. O texto denuncia o agravamento do desequilíbrio entre países ricos, critica o neocolonialismo e afirma o direito de todos os povos ao bem-estar. A encíclica propõe a criação um grande Fundo mundial, sustentado por uma parte da verba das despesas militares, para vir em auxílio dos mais deserdados.
O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquusador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros \’Dom Helder Camara um modelo de esperanca\’, \’Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo\’, \’Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire\’ e o DVD \’ Educar como Prática da Libetdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro \’Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esoeranza\’. Contato profcondini@gmail.com