Prof. Dr. Martinho Condini
[Este artigo foi publicado pela primeira vez na Revista Vida Pastoral. Nov/Dez 2019, nº 330, Ano 60]
Este artigo tem como objetivo apresentar, às novas gerações, um dos mais importantes protagonistas da história da Igreja no Brasil e na América Latina do século XX. Enfatizo algumas passagens importantes de sua vida e destaco como a sua maneira de pensar e agir, na Igreja e nos movimentos sociais, foi significativo para o catolicismo brasileiro e latino americano e para as camadas sociais excluídas da sociedade.
1. Introdução
Se o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883)
Tivesse visto em volta de si uma Igreja encarnada, continuadora da encarnação de Cristo; se tivesse convivido com cristãos que amassem, com atos e de verdade, os homens como expressão, por excelência, do amor a Deus; se tivesse vivido em dias do Vaticano II, que assumiu o que de melhor diz e ensina a teologia das realidades terrestres, não teria apresentado a religião como ópio para o povo, e a Igreja como alienada e alienante (CAMARA. 1966. p.2)
Essa afirmação é de Dom Helder Camara, nordestino, cearense de Fortaleza. No dia sete de fevereiro de dois mil e dezenove foi comemorado os cento e dez anos de seu nascimento.
Dom Helder, embora pequenino quanto à estatura física, foi um gigante na bondade, no carisma, na perseverança, na coragem e na esperança. Foi um religioso, um místico, um profeta e um guerreiro. Um guerreiro, sem que tenha ferido quaisquer que fossem seus adversários, pois os encarava como irmãos dos quais divergia apenas no “campo das ideias”.
Dom Helder foi um dos principais protagonistas da história da Igreja no Brasil e na América Latina no século XX, bem como um incansável lutador contrário às injustiças sociais, uma referência mundial em defesa dos direitos humanos e um dos mais perseguidos opositores dos vinte e um anos de Ditadura Militar no Brasil.
Desde a sua ordenação no ano de 1922, em Fortaleza, até o final do seu bispado, em 1985, como arcebispo de Olinda e Recife, pode ser caracterizada pelo aspecto polêmico de sua postura política e religiosa, diante do contexto político e social de cada época. Na década de 1930, foi integralista; nas décadas de 1940 e 1950, chamavam-no de populista; e nas décadas de 1960 a 1980, foi identificado como comunista.
Dom Helder, certa vez, declarou: “se dou comida aos pobres, eles me chamam de santo. Se pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista”.
Ele viveu as mais profundas transformações na sociedade e no mundo – as relações econômicas e políticas, o desenvolvimento industrial e tecnológico e todo burburinho das novas ideias de uma sociedade industrializada – sem que se afastasse do verdadeiro significado do ser humano.
O medo era um vocábulo não existente em suas pregações, conferências e escritos, pois vivia intensamente o enfrentamento e as dificuldades encontradas pela vida. Sempre tinha, prontamente, os mais argutos, profundos e sensatos argumentos ao defender os seus pontos de vista e a sua maneira de ver o mundo. Ainda que discordasse de seus opositores, era senhor de grande sensibilidade em respeitá-los e reconhecê-los.
Certa vez, em plena Ditadura Militar no Brasil, ligaram para Dom Helder, em sua casa na Igreja das Fronteiras, em Recife e perguntaram como ele queria morrer: enforcado ou esquartejado? Prontamente, ele respondeu “quero ser esquartejado e que partes do meu corpo sejam espalhadas pela cidade de Recife”. Ele dizia que nos momentos difíceis não podíamos demonstrar que estávamos com medo, mesmo que estivéssemos.
Essa coragem e serenidade vinham da sua esperança, a qual transmitia e, ao mesmo tempo, contagiava as pessoas com a mesma intensidade e otimismo que carregava dentro de si.
Ao se pronunciar ao mundo, nas requintadas salas governamentais, nas reuniões com os cardeais e papas e nas universidades – entre alunos e professores – ou nas Comunidades Eclesiais de Base, com o povo de Deus, Dom Helder dava o tom da esperança. Das virtudes demonstradas por Dom Helder, destacamos a sua capacidade de ouvir, refletir e agir, sempre no limite do provisório. Ele foi “a voz dos que não têm vez e não têm voz”.
Foi o idealizador e criador da CNBB e, posteriormente, do CELAM. Teve participação significativa nos bastidores do Concílio Vaticano II e na Conferência Episcopal de Medellín, trazendo, habilmente, a construção da Teologia da Libertação e de uma nova Igreja na América Latina, voltada para os excluídos: a Igreja dos Pobres.
Podemos dizer que sua atividade pastoral foi progressista, revolucionária e humanista, e, por que não dizer, profundamente cristã.
2. A infância em Fortaleza
O garoto Helder e seus irmãos passaram a infância numa casa com quintal a perder de vista, com muitas árvores frutíferas, pródigas em sombra e frutos, onde também passava o córrego Pageú, no qual eles adoravam se refrescar do intenso calor cearense.
Uma das diversões prediletas de Helder era brincar de ser padre. Ele montava um altar com caixotes de madeira, subia em um deles e fazia seus sermões imaginários para as árvores e os pássaros.
Durante a sua infância, Helder tornou-se aspirante da Conferência de São Vicente de Paulo, sua primeira ação social. Visitava famílias carentes para prestar-lhes ajuda. A poucos metros de sua casa, encontrava-se a Igreja da Sé, onde fez a primeira comunhão e, mais tarde, ordenou-se e celebrou a primeira missa.
O pai de Helder, quando notou o interesse do menino pelo sacerdócio, lhe disse: “Para ser padre não pode ser egoísta. Os padres acreditam que quando celebram a eucaristia é o próprio Cristo que está presente”. Helder, então com nove anos de idade, decidiu imediatamente: “Pai, é um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”.
No ano de 1923, ingressou no Seminário dos Padres Lazaristas, franceses e holandeses, que possibilitou a ele uma formação cultural erudita; mesmo assim, jamais deixou de valorizar a cultura nordestina e de se preocupar com as condições desfavoráveis do seu povo.
Ordenou-se no ano de 1931, aos 22 anos de idade, dois abaixo do mínimo exigido pelo direito canônico, o que implicou uma autorização especial do Vaticano. Nos cinco primeiros anos de sua vida sacerdotal, dedicou-se à educação católica e aos círculos operários, com uma intensa atividade junto aos jovens e às empregadas domésticas.
3. Uma nova ordem social cristã
Desde muito cedo, padre Helder se fez presente de maneira marcante e combativa nos meios de comunicação social. Teve intensa e importante participação na organização do movimento Juventude Operária Católica (JOC). Ainda em Fortaleza, assumiu funções de assistente eclesiástico da Liga dos Professores Católicos e de professor de religião do Liceu do Ceará.
O interesse pela política o levou a ingressar na Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento político de inspiração nazi-fascista que deu apoio ao Golpe de Estado de Getúlio Vargas e posteriormente à instauração do Estado Novo. Permaneceu entre os partidários de Plínio Salgado de 1932 a 1936.
O jovem padre Helder sofreu forte influência do líder católico e integralista Alceu Amoroso Lima, para quem o autoritarismo e o conservadorismo eram formas de atuação da Igreja capazes de defendê-la do comunismo ateu e “apátrida”. Anos mais tarde, já como arcebispo, ele justificaria a sua opção pelos integralistas exatamente por esse motivo.
No decorrer dos anos de 1930, no entanto, padre Helder já percebia que as concepções autoritárias e conservadoras do catolicismo, herdadas do seminário, estavam “fora de lugar”. A partir daí, ocorreu a transformação ideológica que marcou o início de sua conversão à democracia e à construção de uma nova Igreja, dedicada às questões sociais e aberta à participação dos leigos.
Faz parte dessa guinada a descoberta do ideário do filósofo francês Jaques Maritain, apresentadas a ele pelo então ex-integralista Alceu Amoroso Lima. A obra Humanismo integral e Cristianismo e democracia foi o grande divisor de águas em sua vida. De maneira paulatina, padre Helder incorporou ao seu cotidiano as propostas de Maritain, baseados num novo estilo de santidade caracterizado pela penitência, a simplicidade e a pobreza, criando, assim, uma nova ordem social cristã.
4. Uma liderança da Igreja e dos movimentos sociais
No ano de 1936, padre Helder chega à cidade do Rio de Janeiro. Lá, iniciou seu trabalho de pregação para grupos de jovens, reunidos em paróquias ou em retiros espirituais organizados pela Ação Católica Brasileira (ACB), movimento controlado pela hierarquia e fundado pelo cardeal Sebastião Leme da Silveira Cintra, em 1935. A platéia militante, no vigor da juventude, encontrava no padre Helder, de retórica vibrante, possibilidades de um diálogo envolvente sobre questões complexas e polêmicas da Igreja brasileira.
Não por acaso, portanto, no ano de 1942 ele foi convidado a lecionar nas Faculdades Católicas, que logo se transformariam na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Sua carreira eclesiástica, ao mesmo tempo, ganhava novos contornos. Em 1946, já em plena fase de redemocratização do Brasil, padre Helder tornou-se um importante auxiliar do recém-nomeado arcebispo do Rio de Janeiro, dom Jaime Câmara.
Nesse mesmo ano, organizou a Semana Nacional de Ação Católica, com o objetivo de discutir problemas que escapavam ao controle da cúpula da Igreja. Em abril de 1952 foi sagrado bispo e atuou de maneira decisiva para a criação da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Ele acreditava que as distâncias do território nacional dispersavam a ação do episcopado e isso poderia comprometer o futuro da Igreja Católica no Brasil.
Dom Helder achava necessário, portanto, criar um secretariado nos moldes da Ação Católica Brasileira, para poder estudar, analisar e discutir tanto questões religiosas como temporais, que ultrapassavam o limite das dioceses. Entendia que isso os ajudaria a tomar decisões e a atuar de maneira coesa, além de facilitar o diálogo com o Estado, pois daria um peso maior aos porta-vozes da Igreja.
O bispo Helder preocupou-se em criar uma base sólida para a CNBB, com a realização de encontros regionais e a participação nos programas sociais elaborados pelo governo. Entre os motivos que o levaram a idealizar a entidade, estavam: a necessidade de uma coordenação nacional da Igreja para a expansão e a formação de novas dioceses; e, também, a necessidade de participação intensa nas questões políticas e sociais que envolviam a nação brasileira. Com esses argumentos, cruzou o Brasil, para defender a ideia, apresentada também ao Vaticano.
5. A CNBB e a causa dos excluídos
Seu empenho não foi em vão: a CNBB, finalmente, nasceu em 14 de outubro de 1952. A partir daí, começou a ser construída uma nova história da Igreja no Brasil. O bispo Helder tornou-se secretário-geral da entidade por três mandatos consecutivos (1952 a 1964), o que o tornou uma das principais lideranças do catolicismo também na América Latina.
Na qualidade de secretário-geral da CNBB, participou da organização do Congresso Eucarístico Internacional, realizado no Rio de Janeiro, no ano de 1955. O evento colaborou para uma mudança na condução da vida religiosa do bispo, principalmente após um encontro com o cardeal francês da cidade de Lyon, Pierre Gerlier, que o indagou por que o bispo Helder não utilizava toda a sua inteligência, sua competência e liderança a serviço dos pobres do Rio de Janeiro.
Dom Helder profundamente inspirado pela questão, se comprometeu a dedicar todos os dias de sua vida à causa dos excluídos, decisão que lhe valeu o título de “Bispo das Favelas”. Desenvolveu um ousado projeto na tentativa de erradicar as favelas, denominado “Cruzada São Sebastião”, em homenagem ao padroeiro da cidade do Rio de Janeiro – à época, capital do Brasil. A intenção era transferir os moradores desses aglomerados precários para prédios de apartamentos em plena zona sul.
Assim, Dom Helder pretendia superar a luta de classes, colocando os pobres perto dos ricos e as empregadas e os empregados próximos ao seu trabalho. Estava evidente, para ele, que tal ação não resolveria o problema de moradia no Rio de Janeiro. E admitia publicamente que era necessário mexer com as estruturas, acabar com o êxodo rural e implantar políticas agrárias voltadas para a redistribuição de terras.
6. O Golpe Militar e a chegada a Recife
Não foi a “Cruzada São Sebastião” a sua única incursão em favor dos despossuídos, empenhado que estava em construir esperanças. Dom Helder criou, no ano de 1955, o Banco da Providência – primeira experiência brasileira de um banco popular. A instituição centralizaria a captação de recursos de quem tivesse excedente, para distribuí-los aos necessitados e a entidades filantrópicas. A mensagem da campanha para a arrecadação de donativos era: “Ninguém é tão pobre que não tenha o que oferecer. Ninguém é tão rico que não precise de ajuda” (CONDINI, 2013,p.29).
Foi um sucesso, em grande parte creditado ao carisma do religioso junto ao empresariado fluminense.
O bispo Helder, no entanto, não continuaria no Rio de Janeiro por muito tempo. Depois do golpe militar que depôs João Goulart, no ano de 1964, assumiu a arquidiocese de Olinda e Recife. A mudança não foi ocasional. Teve, sim, o propósito de tentar silenciá-lo.
Ele era uma voz da resistência contra o autoritarismo. Poderia incomodar demais, caso permanecesse na antiga Capital Federal. A providência, porém, produziu efeito contrário. Ao livrar-se da influência do conservador cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, que não gostava da postura política do seu bispo auxiliar, adquiriu autonomia para alçar vôos mais arrojados.
No dia 11 de abril de 1964, agora arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Camara fez seu discurso de posse, para milhares de pessoas que se acotovelavam em frente à matriz de Santo Antônio. O recém-empossado reiterou a intenção de trabalhar para os cidadãos, sem discriminação de credo e ideologia.
7. Entre a cruz e a espada
Dom Helder manteve, a princípio, uma posição de neutralidade – nem situação, nem oposição – diante dos militares que haviam tomado o poder. Com essa atitude, ampliou as possibilidades de dialogar com todos os grupos, mas sua imparcialidade durou pouco.
No trabalho na Diocese de Olinda e Recife, não tardou a entrar em choque com o poder. Logo se pôs a indagar ao Exército sobre a violação dos direitos humanos por práticas de perseguição e tortura aos opositores do regime. O governo reagiu com uma permanente atenção aos movimentos do prelado: seus documentos eram revistados; seus discursos, suas entrevistas e seus depoimentos, ouvidos e censurados. Sem se intimidar, ele prosseguiu seu trabalho em prol dos perseguidos e excluídos.
À semelhança das iniciativas que liderava no Rio de Janeiro, dom Helder criou, em Recife, um projeto de ajuda às vítimas das enchentes que ocorreram no ano de 1965. Dessa ampla campanha nasceu a “Operação Esperança”, que se transformou numa entidade registrada em cartório. Com o passar do tempo, a entidade ampliou a atuação para as áreas rurais.
Graças a esse trabalho, a Arquidiocese de Olinda e Recife se tornou conhecida no mundo inteiro. Isso foi, ao mesmo tempo, uma espécie de proteção contra as investidas da Ditadura na seara plantada pelo bispo, como também uma ferramenta importante para que o povo do Nordeste passasse a reivindicar seus direitos.
Esse trabalho de conscientização prosseguiu ao longo de 20 anos, sempre sob a mira da Ditadura. Haveria um acirrado confronto entre os militares e a Igreja, que contava com outras lideranças tão ativas como dom Helder, em razão de discordâncias ideológicas e de valores éticos e morais. Isso implicava ameaças, perseguição política e patrulhamento ideológico. O bispo de Recife e Olinda não arredou pé de suas convicções.
8. Cala boca: Arcebispo Vermelho!
Embora houvesse proibição à mídia de repercutir suas ações, ele continuava a ampliar a sua notoriedade, até porque era uma referência naquele período de silêncio forçado da sociedade. O confronto com os militares dava-se no diálogo, no campo das ideias, no processo de conscientização e na pregação da paz. Essas foram suas armas.
Ele foi perseguido, também, por que se recusava a participar das comemorações de aniversário da chamada “Revolução” (que era como os militares chamavam o Golpe), entre outros eventos para os quais o regime buscava respaldo nas lideranças da sociedade.
Em carta a amigos, escrita em Recife, em 1967, relatou que fora procurado pelo general do IVº Exército, que vinha com um “apelo de amigo” para que ele celebrasse a missa de terceiro aniversário da “Revolução”. Sua resposta:
Fui amavelmente firme. Intransigente. Sou pastor. Se tenho filhos que vêem no movimento de 31 de março de 1964 a salvação nacional, tenho outros, não menos numerosos, feridos, esmagados, de maneira injusta, por ele. Nem sequer neguei o meu próprio pensamento: o movimento não merece ainda o nome de revolução; impediu, em grande parte, a arrancada do desenvolvimento, pelo bom pretexto de sanear nossa moeda; sacrificou demais o povo; humilhou demais o Brasil diante dos Estados Unidos (CONDINI, 2013, p.54).
O diálogo com os militares ficou ainda mais difícil após a decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. O cerco às ações do arcebispo foi intensificado. Pior: sua vida já corria perigo. Antes mesmo do AI-5, no final de outubro de 1968, as paredes da Igreja das Fronteiras, onde morava dom Helder, foram metralhadas pelo grupo de direita CCC – Comando de Caça aos Comunistas.
Durante o governo do general Emílio Garrastazú Médici (1969-1973), a repressão aos opositores do regime foi intensificada, da mesma forma que as represálias ao arcebispo. Ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. O patrulhamento acentuado estendeu-se até o ano de 1977. Nesse período, seus textos, seus discursos, suas entrevistas e seus depoimentos passaram a ser censurados pelo Ministério da Justiça, com proibição a qualquer espaço na mídia.
O “cala-boca” valia, obviamente, só para o território nacional, de maneira que jornais, revistas e cadeias de rádio e televisão do mundo inteiro abriam espaço à palavra daquele que a Ditadura Militar chamava de “arcebispo vermelho”.
Nos anos 1970, ele fez centenas de pronunciamentos no exterior. Era, também, chamado a fazer palestras e conferências. Uma, em especial, teve muita repercussão, a de maio de 1970 em Paris, no Palácio dos Esportes. Ele denunciou a repressão, as prisões e as torturas que aconteciam no Brasil. O discurso lhe valeu algo que pode ser classificado de “morte civil”, tamanho o cinturão de silêncio imposto à sua pessoa.
A retaliação psicológica e moral foi tamanha que o Governo Militar engendrou um boicote para que ele não fosse agraciado com o prêmio Nobel da Paz, nos primeiros quatro anos da década de 1970. Ele era sempre indicado por uma série de fatores: sua atuação nos bastidores do Concílio Vaticano II (1962-1965) e na II Conferência do Episcopado Latino-Americano em Medellín (1968), sua constante mensagem de não violência na América Latina, sua liderança no seio da chamada “Igreja progressista” na luta por melhores condições de vida, por respeito aos direitos humanos e pela defesa da solidariedade entre as nações, independentemente de suas condições econômicas.
A lei do silêncio contra o arcebispo só acabou em 1977. Em entrevista à jornalista Divane Carvalho, do Jornal do Brasil, sucursal Recife, dom Helder falou sobre seu envolvimento com a Ação Integralista Brasileira, o enfrentamento com os militares pós-64 e a situação da Igreja latino-americana. Em seguida, outros importantes órgãos de comunicação do país o procuraram.
Do final dos anos 1970 até o início de 1984, quando do envio da carta de dom Helder a João Paulo II, que formalizava sua renúncia da Arquidiocese de Olinda e Recife, conforme estava previsto no Código do Direito Canônico, o arcebispo participou ativamente da vida religiosa, social e política do país. Esteve ligado às reflexões com os membros da Teologia da Libertação, esteve ligado à III Conferência do Episcopado Latino Americano, em Puebla, e à IV Conferência do Episcopado Latino Americano, em Santo Domingo.
Sua participação foi decisiva no que ele chamava de “evangelização conscientizadora”, colocada em prática por meio da criação das Comunidades Eclesiais de Base. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, elas se expandiram pelo Brasil e por outros países da América Latina. O objetivo das CEBs era promover a humanização por meio da religiosidade e contribuir para a libertação social das camadas populares.
Participou do processo de redemocratização do país e foi voz importante nos comícios que marcaram a campanha das Diretas-Já, no ano de 1984.
9. Um legado: o Dom em pensamento e atitude
Dom Helder aposentou-se no dia 15 de julho de 1985. Tornou-se arcebispo emérito e permaneceu em Recife, onde deu continuidade a seu trabalho social por meio da fundação Obras de Frei Francisco. Morreu aos 90 anos de idade, em 27 de agosto de 1999, em Recife, cercado de carinho e admiração.
Para finalizar, afirmo que um dos principais legados deixados por Dom Helder foi a sua coerência entre o discurso e a prática. Como é difícil unir esses dois aspectos e fazer essa integração! Dom Helder conseguiu, durante a sua vida inteira, pensar, falar e agir conforme os seus princípios políticos, ideológicos, religiosos, éticos e morais. Um ser humano pleno em pensamento e atitude!
Hoje, somente nos resta agradecer a sua existência, pelo exemplo de vida deixado por esse religioso que sempre esteve à frente do seu tempo. Acredito que a nossa missão seja semear às novas gerações o pensamento, os princípios e as atitudes desse homem, religioso e profeta Dom Helder Camara, a fim de colaborarmos para a construção de uma sociedade mais humana, justa e fraterna para todos.
Caro Dom! Você estará sempre junto de nós!
Referências Bibliográficas
ARAUJO, Edvaldo M. Dom Helder Camara: profeta-peregrino da justiça e da paz. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2012.
BULLA, Ilvana Maria Pereira; CONDINI, Martinho.Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo. São Paulo: Paulus, 2011. [Coleção Brasileirinhos]
CAMARA. Helder. Presença de Igreja no desenvolvimento da América Latina. Conferência na cidade de Buenos Aires em 1966.
CONDINI, Martinho. Dom Helder Camara: um modelo de esperança. 3ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2013. [Coleção Comunidade e Missão]
CONDINI, Martinho. Fundamentos para uma educação libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire. São Paulo: Paulus, 2014. [Coleção Educação Superior]
RAMPON, Ivanir Antonio. O caminho espiritual de Dom Helder Camara. São Paulo: Paulinas, 2013. [Coleção Pesquisa Teológica]
RAMPON, Ivanir Antonio. Paulo VI e Dom Helder Camara: exemplo de uma amizade espiritual. São Paulo; Paulinas, 2014.
RAMPON,Ivanir Antonio. Francisco e Helder Sintonia espitiritual. São Paulo: Paulinas, 2016.
O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquusador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros \’Dom Helder Camara um modelo de esperanca\’, \’Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo\’, \’Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire\’ e o DVD \’ Educar como Prática da Libetdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro \’Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esoeranza\’. Contato profcondini@gmail.com
[1]Dom: esta era a maneira carinhosa e respeitosa com a qual a população da cidade de Recife, Pernambuco, chamava ou se referia ao arcebispo de Olinda e Recife. No decorrer deste artigo utilizarei diferentes maneiras para me referir a Dom Helder Camara, dependendo do contexto histórico ao que estarei me referindo.