Memória em Palavras: Dom Helder Camara Entre a Cruz e a Espada

Memória em Palavras: Dom Helder Camara Entre a Cruz e a Espada                                                                                                       

 

Prof. Dr. Martinho Condini

 

[Este artigo foi publicado pela primeira vez nos anais da XIII Jornada Sobre Alternativas Religiosas na América Latina realizada na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2005.]

 

O Sacerdote Guerreiro

 

       

O ano de 1964 foi um marco na história do Brasil em função do golpe militar que depôs João Goulart, em 31 de março, e para a vida de Dom Helder que, neste mesmo ano, foi transferido para Recife, em Pernambuco, onde assumiu a arquidiocese de Olinda e Recife, depois de ter permanecido no Rio de Janeiro por quase trinta anos. A partir daquele momento o Brasil e dom Helder entraram num profundo processo de transformação. O Brasil com o início de uma ditadura militar, cujo objetivo era criar condições para que as elites brasileiras mantivessem seus privilégios políticos, econômicos e sociais.  E Dom Helder, que no decorrer dos anos, tornou-se a principal voz de oposição ao regime militar e a mais eloqüente liderança eclesial do Brasil e da América Latina. Desse modo, iniciou-se um dos mais importantes processos de transformação política e social dentro da Igreja Católica no Brasil.

        Naquele contexto, Dom Helder enfrentou problemas de ordem política com os militares, com o alto clero brasileiro e com o Vaticano. Esses enfrentamentos ocorreram em função da sua postura autêntica e transparente e que sempre se mostrou um homem e um religioso convicto de seus princípios e ideais.  

        Ao mesmo tempo em que ele temia a consolidação de um grupo político seguidor do comunismo no Brasil, havia também uma grande desconfiança de sua parte em relação ao grupo de militares que assumia o poder. Que rumo o Brasil irá tomar? Essa era  sua grande indagação.

         O clero nacional apresentava-se dividido em diferentes grupos, e cada um tinha um entendimento diferenciado a respeito do momento político pelo qual o Brasil passava. 

Naqueles primeiros momentos do golpe militar de 1964, Dom Helder mais observava do que agia. Inicialmente, o arcebispo de Olinda e Recife não apoiou os militares e nem fez oposição sistemática ao novo governo. Foi prudente e cauteloso, tendo o cuidado de observar e sentir quais eram as intenções dos que estavam assumindo o poder e quais eram seus interesses diante daquela nova realidade. Essa postura fica clara em seu discurso de posse na Arquidiocese de Olinda e Recife, em 11 de abril daquele mesmo ano:

 

[…] Em nosso país todos entendem e proclamam a inadiabilidade das reformas de base. Havia, da parte de muitos, desconfiança em relação aos executantes das reformas e, sobretudo, medo da infiltração comunista. Agora que a situação mudou, não temos tempo a perder. Que venham sem demora as esperadas reformas.

(Piletti e Praxedes, 1997, p.303). 

                

        A Igreja Católica demonstrou simpatia e apoio ao golpe militar nos seus primeiros meses de atuação. Mas até ao final da década de sessenta, parte dela passou a ser um dos principais pilares de sustentação de oposição à ditadura. Daí renasceu aquela Igreja que havia surgido na segunda metade da década de cinqüenta, com o nascimento da CNBB1, uma Igreja engajada nos movimentos sociais e preocupada com os excluídos.

        Dom Helder não se mostrou favorável  ao regime e, por isso, no decorrer dos anos da ditadura, passou a sofrer enfrentamentos por parte de setores da Igreja e do Vaticano. A retaliação e perseguição se acentuavam conforme a hegemonia e o poder dos militares se consolidavam. Dom Helder se posicionava e demonstrava cada vez com mais transparência o seu descontentamento pela não realização das reformas tão esperadas e, principalmente, pelas injustiças sociais e atitudes de desrespeito aos direitos humanos cometidas por parte do novo regime.

 

O enfrentamento com os militares

 

        A “revolução”, em março de 1964, provocou uma profunda alteração nas relações sócio-política-econômica-culturais da sociedade brasileira. O regime militar utilizou-se do autoritarismo, da repressão, da tortura e do extermínio para se consolidar no poder; e implantou a política econômica do “milagre brasileiro”2  para  satisfizer aos interesses da elite brasileira e das nações imperialistas industrializadas. Foi nesse contexto que Dom Helder assumiu a arquidiocese de Olinda e Recife e, conseqüentemente, as divergências entre o arcebispo com os militares e com a própria Igreja se acentuaram no decorrer da ditadura militar.  Naquele momento começava a despontar a liderança de Dom Helder, com sua maneira profética de olhar o mundo e se relacionar com os diferentes setores da sociedade, de conduzir o processo de transformações que ocorreu na Igreja e na sociedade e o corajoso enfrentamento com o regime militar. Como afirma José Ernanne Pinheiro3:

 

[…] Exatamente alguns dias após desencadeado o movimento militar, no dia 12/04/1964, Dom Hélder Câmara assume, como pastor, a arquidiocese de Olinda e Recife, definindo uma posição clara do seu pastoreio diante das tensões em foco. O novo arcebispo de Olinda e Recife vai ser um marco expressivo em toda essa presença profética da Igreja no Nordeste, no Brasil;  sem dúvida, também uma janela aberta do Brasil reprimido para o diálogo com o mundo. […] O confronto dele com as posições dos militares e seu rompimento histórico com o regime militar foram um passo importante para dar mais liberdade à Igreja diante dos poderosos da época[..]. (Instituto Nacional de Pastoral, 2003,  p. 260)

 

           A postura de Dom Helder, em se mostrar livre para relacionar-se tanto com os militares quanto com os opositores ao regime, deixava a impressão de que o arcebispo estava acima dos conflitos entre a direita e a esquerda. Por isso, era visto como um possível aliado, por ambos os lados, devido à sua atuação política em defesa das reformas de base e sua boa relação com as autoridades civis e militares do país. Seu posicionamento era polêmico com relação à direita e à esquerda:

 

[…]Ninguém se espante me vendo com criaturas tidas como envolventes e perigosas, da esquerda ou da direita, da situação ou da oposição, anti-reformista ou reformistas, anti-revolucionárias ou revolucionárias, tidas como de boa ou de má fé. Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades […].

(Piletti e Praxedes, 1997, p. 303)

 

        As relações do clero pernambucano com os militares, nos primeiros meses de governo, foram até certo ponto cordiais. Principalmente na figura de Dom Helder que, através do diálogo e cordialidade, conseguia resolver os impasses entre o governo militar e os opositores ao regime.    Chegou-se a cogitar na época a possibilidade do arcebispo de Olinda e Recife inverter os rumos daquela “revolução” e transformá-la numa iniciativa democrática e cristã, tal era a sua habilidade na arte de dialogar.

        Um aspecto importante que o levou a ganhar cada vez mais notoriedade, no período pós-64, foi a ausência de movimentos populares na luta contra as péssimas condições de vida, a repressão, a violência, a tortura e as injustiças sociais. Dom Helder preencheu com sua intensa atividade um vazio deixado pela falta desses movimentos.

        A desintegração da organização social e a repressão política estavam sendo patrocinadas pelo governo militar. Através da ação desse governo, os movimentos sociais, os partidos políticos, os sindicatos e os grupos que representavam os estudantes estavam sob o controle da ditadura ou sendo cassados por eles. Essa postura autoritária incomodava parte do clero nordestino, no qual o arcebispo de Olinda e Recife estava inserido e era a principal liderança.  Tal situação fez com que Dom Helder tomasse atitudes de enfrentamento ao regime com o compromisso cada vez mais arraigado pela causa dos pobres, dos  injustiçados, dos perseguidos políticos ou de qualquer tipo de desigualdade social.

        Foi naquele contexto sócio-político-econômico que Dom Helder construiu um modelo de esperança e resistência para enfrentar o regime militar. Tornou-se o principal líder da Igreja Católica do nordeste e, ao longo dos anos, o mais importante religioso da Igreja Católica progressista no Brasil e na América Latina. Isso ocorreu devido à sua postura, conduta e coerência diante dos fatos, além do compromisso a favor dos excluídos. Soma-se a isto, também, a sua constante luta pelo fim das injustiças sociais e a permanente cobrança pelo cumprimento e respeito aos direitos humanos pelo governo comandado pelas forças armadas.

        O trabalho do arcebispo, em Recife, desenvolveu-se concomitante ao período do governo militar. Isso fez com que as suas atitudes e atividades, fossem elas sociais, religiosas ou políticas, estivessem sempre sob o foco dos militares; era uma incansável perseguição e patrulhamento do governo ao religioso.

        Em novembro de 1964, ele concedeu uma entrevista a uma emissora de televisão em Recife, na qual falou sobre o Concílio Vaticano II, inflação e a exploração dos países ricos sobre os países pobres. Esse seu pronunciamento levou os militares a adverti-lo verbalmente, alegando que o arcebispo teve uma atitude anti-governista e de tom demagógico esquerdista. Dom Helder não concordou com a advertência e declarou a amigos particulares que teria uma outra postura a partir desse momento:

 

“Não pretendo cometer nenhuma imprudência. Mas não desejo, de modo algum, acovardar-me e silenciar”. (Piletti e Praxedes, 1997, p.327).

 

        A perseguição a ele se deu de diferentes maneiras e por motivos diversos como, por exemplo, por ocasião de sua negação em comparecer às comemorações de aniversário do golpe de 1964, de suas viagens ao exterior, de denúncias, por parte do arcebispo, de que havia práticas de tortura e desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Chegou-se ao ponto da Diplomacia brasileira impedir que o arcebispo recebesse, no quatro primeiros anos da década de  setenta, a indicação para o prêmio Nobel da paz.

        A reação dos militares aos acontecimentos envolvendo a postura oposicionista de Dom Helder foi sempre as piores possíveis, marcadas pela repressão e violência. A represália a ele e às pessoas ligadas ao arcebispo foram diretas, como a prisão de  vários  militantes  do  movimento   estudantil,   do   MEB4 e  da  JUC5. A cúpula militar do estado maior de Pernambuco o denunciara aos superiores como comunista e “pessoa não grata à Revolução”. Os militares do IV Exército queriam  sua saída de Recife.

        Sua transferência da Arquidiocese de Olinda e Recife, como desejava os militares do IV Exército, não ocorreu por dois motivos: o prestígio de Dom Helder no Vaticano e seu ótimo relacionamento com o Papa Paulo VI, e o desinteresse do governo brasileiro em criar uma situação embaraçosa e de conflito com a Igreja, fato esse que poderia causar um mal estar de proporções irrecuperáveis ao regime militar.  

        Aproximavam-se as comemorações do terceiro ano do golpe militar de 1964 e Dom Helder foi novamente convidado a comparecer ao evento e celebrar a missa campal. Foi uma situação delicada, pois seu relacionamento com os militares estava cada vez mais abalado e não comparecer seria complicado, porque reforçaria  a situação vigente. Por outro lado, não havia motivação alguma para ele comparecer a tal evento, afinal suas convicções políticas e sociais estavam em total desarmonia com os encaminhamentos que os militares davam às prometidas reformas estruturais.

        Às vésperas dessas comemorações, ele recebeu o general Souza Aguiar, comandante do IV Exército, e lhe explicou os motivos da sua não participação às comemorações do terceiro aniversário do golpe militar. O registro dessa justificativa está na correspondência que Dom Hélder habitualmente enviava aos amigos do Rio de Janeiro:

 

 Recife, 30/31-3-1967

 3º aniversário da revolução brasileira. Vigília mais longa pedindo por nossa terra. O general do IV Exército esteve em nossa casa para visitar-me e fazer-me apelo de amigo: que eu celebrasse a missa de aniversário da Revolução… Que ao menos dela participasse! Fui amavelmente firme. Intransigente. Sou pastor. Se tenho filhos que vêem no movimento de 31-3/1-4 a salvação nacional, tenho outros, não menos numerosos, feridos, esmagados, de maneira injusta, por ele. Nem se quer neguei o meu próprio pensamento: o movimento não merece ainda o nome de revolução; impediu, em grande parte, a arrancada do  desenvolvimento, pelo bom pretexto de sanear nossa moeda; sacrificou demais o povo; humilhou demais o Brasil diante dos Estados Unidos.

[Piletti e Praxedes, 1997, p. 333]

 

        Ele demonstrou, naquele momento, a sua coerência de princípios e, apesar das represálias, não se curvou aos pedidos das forças armadas. Com a firmeza que lhe era peculiar, recusou-se a participar também da terceira comemoração e justificou-se de  maneira  transparente,  sem  hesitar  em  suas explicações. Dom Helder, ao longo de sua vida religiosa, sempre atuou em vários movimentos como a Ação Católica (AC)6 e o Movimento de Educação Básica (MEB). Naquele momento ambos os movimentos tiveram uma atuação significativa em relação às críticas ao sistema político e econômico que vigorava no país. Por isso seus militantes sofreram intensa represália e perseguição por parte do regime. Apesar dessa situação, o arcebispo de Recife sempre considerou os membros desses grupos seus “filhos espirituais”, e sempre os protegia a fim de que não fossem presos e torturados pelo governo.          

        Mesmo com tantas diferenças havia, ainda, um bom diálogo entre os integrantes da cúpula militar e o arcebispo de Olinda e Recife, mas quando este optou por ficar ao lado de seus “filhos espirituais” – em função das perseguições, prisões, torturas e exílios – e utilizar de sua influência para protegê-los, iniciou-se uma crise sem volta no relacionamento entre o governo militar e Dom Helder. Segundo Thomas Bruneau:

 

“[…] elementos do Exército estavam tentando isolar Dom Helder da instituição maior, implicando que a Igreja era pura e fiel, mas ele e seus adeptos estavam tentando corrompe-la […]”  [Piletti e Praxedes, 1997, p. 338]

 

        Ao  final  do  mês   de  outubro   de  1968,   os   ataques   ao   arcebispo  se acentuaram de maneira ostensiva e violenta. Isso ocorreu quando o muro da Igreja das Fronteiras foi metralhado, nos fundos da qual residia Dom Helder desde janeiro do mesmo ano, quando se mudou do Palácio São José de Manguinhos, residência oficial do arcebispo. A justificativa para tal mudança era o seu interesse em viver com desprendimento material, pois já havia optado em trabalhar numa Igreja servidora e pobre. Os autores do atentado eram membros do CCC7 (Comando de Caça aos Comunistas). Alguns dias depois, um novo atentado atingiu a Igreja das Fronteiras, mas, em ambos, o arcebispo não se encontrava em sua residência.

        Esses acontecimentos fortaleceram sua campanha contra a violência e a luta por justiça social através de movimentos como a Ação, Justiça e Paz liderado por Dom Helder, em outubro de 1968. Sua atitude de não entrar em pânico com as ameaças aumentaram ainda mais a sua popularidade e mística no Brasil e no exterior em torno da sua firmeza e coragem no enfrentamento com a ditadura militar.    

        A decretação do Ato Institucional nº 5 – o AI-5 – em dezembro de 1968, assinada pelo presidente Costa e Silva, provocou o fechamento do Congresso Nacional, a eliminação das liberdades civis e de imprensa e as Forças Armadas tiveram carta branca do governo para exterminar a oposição. Com isso, movimentos sociais, associações e sindicatos opositores ao regime foram vigiados, cassados e fechados. O mesmo acontecia aos cidadãos, que foram perseguidos, interrogados, presos, torturados, exilados e mortos.

        Apesar  de  todo  o  quadro  adverso,  com  perseguição  e  intimidação, em relação a Dom Helder, nos últimos anos, ele mantinha canais abertos de comunicação com os militares. Queria acreditar que o AI-5 poderia ser útil e ajudar o governo a consolidar o projeto de transformação do país que, em sua opinião, ainda estava apenas no discurso feito pelos militares quando da tomada do poder. 

No início de 1969, ele, que a princípio não apoiava e nem rejeitava o AI-5, dizia que o mesmo:

 

[…] grande serviço prestaria a Ação, Justiça e Paz ao país e ao continente, se obtivesse, de todos os  seus integrantes, quebra de preconceitos antimilitares (todo preconceito é fraqueza intelectual, ou primarismo cultural…) e especializasse alguns de seus membros, os mais qualificados, de modo a  conquistarem o direito de rever, com militares-chave, conceitos básicos para a  marcha do desenvolvimento e da paz, como os de segurança nacional e ordem social. [Piletti e Praxedes,  p. 354].

 

        A partir de 1969, no governo do General Emílio Garrastazu Médici, entrou-se nos chamados “Anos de Chumbo” da ditadura militar, pois essa repressão e opressão intensificaram-se ainda mais sobre os opositores ao regime militar. Em pouco tempo Dom Helder percebeu que os objetivos do AI-5 eram outros, totalmente diferentes daqueles pensados por ele. Naquele momento, ele decidiu continuar apoiando as manifestações estudantis e lançando manifestos contra qualquer tipo de opressão e cassação. As represálias ao arcebispo tornaram-se constantes novamente e, apesar de sua respeitabilidade dentro e fora do país, foi enquadrado na  Lei  de   Segurança Nacional8. O patrulhamento a ele foi acentuando-se com o passar dos anos, principalmente entre os anos de 1969 a 1977. Neste período seus textos, discursos, entrevistas e depoimentos passaram a receber uma maior atenção por parte do governo e foram censurados pelo ministério da justiça. Relembra SERBIN:

 

[…] Silenciado em seu próprio país, tornou-se o mais importante crítico do  regime no  exterior. Para deter Dom Hélder, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid propôs ao presidente Médici que o governo revogasse o passaporte especial do arcebispo. O ministro das relações exteriores Mário Gibson Barboza, um moderado, vetou a medida como sendo ilegal[…] [ Serbin, 2002,  pp. 171-2.]

 

        O carisma, respeito e projeção que envolviam a pessoa de Dom Helder, tanto nacional como internacionalmente, fizeram com que estas retaliações feitas a ele acontecessem de maneira indireta, atingindo pessoas de sua confiança. O maior exemplo dessa ação foi o assassinato do padre Antônio Henrique Pereira Neto, jovem religioso, que trabalhou no apostolado da juventude, principalmente com universitários, e tinha uma relação muito próxima com o arcebispo. Dom Helder descreve aquele momento difícil a procura do companheiro: 

 

Saí com Dom Lamartine […] fomos primeiro aos hospitais. Padre Henrique não estava em nenhum deles. […] Quando chegamos ao necrotério, lá estava nosso padre Henrique, como um cadáver  desconhecido. […] seu corpo era uma coisa impressionante, tinha sido trucidado. Porque além de  uma bala na  cabeça, a queima roupa, ele também tinha sido estrangulado […]. [Castro, 2002, p.148 ]  

       

        Essa foi uma das formas utilizadas pelos militares para minar o trabalho daqueles que se encontravam junto a Dom Helder, que mesmo estrangeiras, essas pessoas eram presas e exiladas. Conforme Magalhães menciona em sua obra:

 

[…] Religiosos e animadores que participavam do projeto de campo “Operação Esperança”, o qual uma associação de camponeses comprava a terra e os próprios nela trabalhavam, foram perseguidos. Encardinados na diocese de Olinda e Recife os padres norte-americanos, Dario Rupiee e Peter Grans Oblatas de Maria Imaculada foram expulsos em 26 de dezembro de 1968. Em 1974, a polícia pernambucana prendeu e torturou brutalmente o pastor jornalista norte-americano Fred Morris, amigo de Dom Helder; no ano seguinte o pastor foi expulso, num quadro de novas prisões de amigos de Dom Hélder e colaboradores do movimento de Evangelização […]. [Magalhães, 1998, pp. 86-87]

 

        Nem mesmo o assassinato ou as perseguições aos que estavam próximos de Dom Helder,  impediram-no de expor suas idéias, princípios e defender os seus pontos de vista, sempre que procurado pelos meios de comunicação que lhe davam espaço para se pronunciar.

Para impedir a ação de Dom Helder nos meios de comunicação, imprensa, rádio ou televisão, as quais ele utilizava para denunciar as injustiças sociais, a exploração dos ricos sobre os pobres e a repressão, os militares resolveram aplicar-lhe um “cala boca”. O arcebispo passou a ser boicotado por todos os tipos de órgão de imprensa. No início dos anos 70, o Ministério da Justiça do governo Médici impõe forte censura a Dom Helder, que não seria ouvido pelos órgãos de imprensa nos próximos sete anos:

 

[…] No início de setembro de 1970 uma ordem oficial começa a chegar às  redações dos órgãos de imprensa de todo país, enviada pela Polícia Federal,  com uma mensagem clara: De ordem do sr. Ministro da Justiça (Alfredo Buzaid), ficam proibidas quaisquer manifestações na imprensa falada, escrita e televisada contra ou a favor de Dom Hélder Câmara.[Piletti e Praxedes, 1997, pp. 386-387]

 

        Se por um lado, Dom Helder foi calado pelo governo militar, impedindo que a imprensa mencionasse o seu nome de maneira positiva ou negativa, no exterior queriam ouvir o “arcebispo vermelho”, denominação dada a ele pela cúpula militar. O arcebispo passa a fazer palestras e conferências em vários países do mundo. Dizia que “não se sentia estrangeiro em nenhum lugar do mundo, e sim, irmão de todos, livre para dizer o que pensava fazendo as críticas que julgasse justa” [Castro, 2002, p.212]

 

        Em maio de 1970, Dom Helder, no Palácio dos Esportes em Paris, na França, fez uma palestra  para aproximadamente dez mil pessoas, e outras dez mil ficaram para fora do ginásio. Ele iria falar sobre a responsabilidade da França no contexto mundial da época. Porém, momentos antes foi lhe solicitado que falasse sobre a realidade política brasileira. O argumento para convencê-lo foi: “[…] ou ele fazia aquela denúncia publicamente aos franceses ou perderia a força moral para denunciar as injustiças e os absurdos que passam nos outros países”. [Castro, 2002, p. 212]

 Assim, Dom Helder improvisou um novo título para a sua palestra: “Quaisquer que sejam as conseqüências”, e denunciou a repressão, as prisões e as torturas que estavam acontecendo no Brasil. Ele citou fatos dos quais tinha conhecimento e informações detalhadas. Trecho de seu pronunciamento:

 

[…] Um dia  li nos  jornais  da cidade que um desses estudantes tinha se atirado da janela do  prédio da polícia. Imediatamente,  fui ao hospital com meu bispo auxiliar. Então, nós dois, junto com o médico, junto com a polícia que estava lá, vimos o ferido, os membros quebrados. Perguntei-lhe: “o que aconteceu?” Então Luís de Medeiros respondeu –me: “Ah! Dom Hélder! Eu sofri torturas  terríveis e no momento em que descobri que elas iam recomeçar eu preferi me jogar pela janela”. [Piletti e Praxedes, 1997, p.382]

 

Pela primeira vez, alguém teve a coragem de fazer uma denúncia tão contundente contra o regime militar. Essa sua atitude irritou profundamente os militares, que já estavam incomodados com suas saídas do Brasil e diziam que ele ia ao estrangeiro para difamar e denegrir a imagem do país. Segundo palavras de Dom Helder: 

 

“[…] O que fiz foi defender a justiça. Se combato as injustiças quando são  cometidas em qualquer  parte do mundo, porque haveria de calar quando as injustiças e arbitrariedades passam dentro do meu país?” [Castro, 1997, pp. 181-182].

 

        Sua principal preocupação era com a defesa da justiça. E as conseqüências  não demoraram a vir. Como o próprio título da palestra já previa, as suspeitas presentes no título já se confirmaram, Dom Helder pagou pela sua coragem e ousadia em dizer a verdade a respeito do que estava acontecendo no Brasil. Oficialmente o governo Médici impõe a lei do silêncio, e mais nada será falado a respeito de Dom Helder: foi decretada a sua morte civil.

        Dentre os fatos mais relevantes que comprovam toda perseguição e  represália sobre Dom Hélder foi o boicote ao seu nome para o recebimento do prêmio Nobel da paz nos anos 70. Essa atitude do governo militar demonstra o quanto o nome do arcebispo naquele momento incomodava as autoridades brasileiras, apesar de todo o prestígio e reconhecimento internacional do profeta nordestino. Vários foram os fatores que motivaram a indicação de Dom Helder, para receber o prêmio, nos quatro primeiros anos da década de setenta. O primeiro deles foi a notoriedade que Dom Hélder adquiriu por causa da sua atuação nos bastidores do Concílio Vaticano II 9.

        O segundo foi uma somatória de fatores, como por exemplo: sua constante mensagem de não-violência na América Latina em decorrência dos atos terroristas e dos movimentos guerrilheiros; a sua posição de liderança dentro da Igreja na luta por melhores condições de vida, respeito aos direitos humanos e a solidariedade entre as nações, independente das suas condições econômicas.

        Apesar da contribuição efetiva de Dom Helder nesses campos, a embaixada brasileira em Oslo, Noruega, a mando do governo Médici, trabalhou nos bastidores do comitê do Nobel para anular sua candidatura. Esse processo se deu através de uma pesada campanha de parcela da imprensa brasileira e da embaixada brasileira na Noruega nos principais jornais de Oslo, que difamavam o nome de Dom Helder, para que fosse rejeitado pelo Comitê do Nobel.    Concomitantemente, trabalharam para que a maioria, entre os cinco membros do Comitê, não votassem a favor de sua premiação. Um dos artigos publicados naquela época no jornal “O Estado de São Paulo”, estampava o título “Prêmio Nobel à Violência”, e dizia o seguinte:

 

[…] Na década de 1930, Dom Hélder Câmara era fascista, “camisa verde” e  defensor dos adeptos de Adolf Hitler no Brasil. Hoje em dia ele tem se virado no sentido oposto, politicamente, e muita gente o considera comunista. Ele é um grande admirador de Fidel Castro e vê líderes como Ernesto Che Guevara, Camilo Torres como modelos. [Piletti e Praxedes, 1997, p. 12]

 

        O fato de Dom Helder ter sido indicado várias vezes para receber o prêmio Nobel da Paz e nunca ter conseguido, despertou suspeitas nos setores progressistas da sociedade brasileira. Em 1973, por ocasião da última indicação,  Dom Helder, em uma de suas meditações, escreveu algo que mostrava como concebia esta situação:

[…] que o Nobel da Paz jamais chegou a preocupar-me; que minha candidatura sempre foi lançada, sobretudo, por jovens e trabalhadores, a quem escrevi dizendo que, para mim, o verdadeiro […] Nobel era a compreensão e a simpatia dos moços e dos operários, dos oprimidos e dos simples. [Piletti e Praxedes, 1997, p.15]

 

        O retorno de Dom Helder aos noticiários, e o fim da censura em torno do seu nome, ocorreu em 1977. Estávamos em pleno processo de abertura política instaurado pelo governo Geisel. Foi uma entrevista concedida à jornalista Divane Carvalho do Jornal do Brasil, sucursal Recife, em 24 de abril de 1977.

        Ele falou sobre o seu ingresso no movimento integralista, o enfrentamento com os militares pós-64, a situação da Igreja latino-americana, as viagens, a censura que sofreu nos últimos anos e sobre a tortura sofrida pelos adversários do regime. Depois desta reportagem, Dom Helder passa a conceder entrevistas para os  principais jornais, revistas e até emissoras de televisão do  país. Tinha muito a dizer a respeito dos novos rumos do Brasil e do mundo, como também acalentar a sociedade brasileira com suas mensagens de esperança.

 

As Divergências com a Igreja

 

        Quando nos referimos à Igreja10 enfatizamos, especialmente, a sua hierarquia.  Antes de abordarmos os conflitos ocorridos entre a Igreja e Dom Helder, é importante enfocarmos a diferença entre a Igreja nordestina e a Igreja de outras regiões do Brasil, para que possamos melhor compreender tais divergências.

        A região Nordeste, desde a segunda metade do século XIX, sofreu um processo de abandono e empobrecimento que afetou profundamente as  questões sócio-econômicas da maioria de sua população. Essa condição desfavorável levou a Igreja, nessa região, a buscar uma concretização da sua doutrina social11. A questão da injustiça se constituiu numa preocupação constante e, a partir da década de 50, essa preocupação tornou-se mais forte por parte de alguns  religiosos. Isso ocorreu em função do envolvimento da Igreja com os movimentos camponeses, devido aos graves problemas da concentração de terra naquela região.

        A partir do pós-64, a Igreja nordestina, representada pela Regional II– uma divisão feita pela CNBB, constituída pelos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas – fez, nos primeiros quatro anos do governo militar, as principais críticas e oposição ao regime. Dessa maneira, reafirmavam e mantinham sua tradição reformista.

Em Brasil Nunca Mais lemos:

 

[…] A transformação política vivida pelo Brasil no início da década de 60 e, especialmente, em 1964, coincidiu com mudanças que a Igreja Católica passava a experimentar a partir do Concílio Vaticano II, num sentido de maior comprometimento com os setores marginalizados da população e seus anseios de justiça. […] Embora minoritários, já existiam  bispos, sacerdotes, religiosas e leigos que assumiam uma atitude contrária, de apoio às Reformas de Base. Bispos, como Dom Hélder Câmara, já começavam a ser conhecidos como identificados com as pressões por mudanças nas estruturas sociais injustas, segundo compromisso assumido durante o Concílio Vaticano II. [Arquidiocese de São Paulo, 1985, p.147]

 

        A oposição ao regime militar exercida por esses grupos, no qual Dom Helder era uma das principais vozes, justificava-se pelo contexto de miséria, pobreza, lutas sociais e repressão em que se encontrava a população, como, também, pelas  transformações  que ocorriam internamente na Igreja Católica. Transformações essas que se deram com a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, já na Segunda metade da década de 50, que tinha como objetivo dar uma maior organicidade à ação pastoral.

        As  novas  diretrizes da Igreja traçadas pelo Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII na década de 60 em Roma, fizeram-na adquirir uma nova maneira de agir e direcionar seus objetivos, levando-a a reafirmar e consolidar  sua doutrina social  preocupada com os pobres e as injustiças sociais. Conforme Serbin descreve em sua obra:

 

[…]O Concílio Vaticano II reuniu em Roma, de 1962 a 1965, mais de dois mil  bispos e centenas de  teólogos de todas as partes do mundo […] O Vaticano II assimilou muitas idéias da América Latina graças à pressão dos  bastidores de Dom Hélder Câmara e Dom Manuel de Larrain, do Chile. Por sua vez, a ênfase do Concílio na justiça social e nos direitos humanos impeliu teólogos, o clero e as freiras da América Latina a se aprofundarem no  trabalho com a maioria empobrecida. [Serbin, 2001, p.99]

 

        É importante ressaltar que a Igreja Católica no Brasil, através de seus membros da CNBB, teve uma destacada participação no Concílio. O religioso brasileiro que mais se destacou foi Dom Helder. Com vasta experiência no campo da pastoral e dos trabalhos sociais no pós-Concílio, ele contribuíra para uma renovação da Igreja no Brasil e na América Latina. Este seu posicionamento no Concílio e sua maneira de atuar na Arquidiocese de Olinda e Recife foram aspectos preponderantes para que o alto clero tivesse uma redobrada atenção e vigilância sobre o religioso.   Ao longo dos anos da ditadura, ele foi uma das mais importantes vozes opositoras ao sistema vigente e à postura conservadora da Igreja diante dos problemas que afligiam o Brasil e o mundo. 

        Diferentemente da ala progressista da Igreja liderada por Dom Helder, a  CNBB, no ato do golpe militar, dominada pela ala conservadora, emitiu um manifesto apoiando os militares.         Naquele momento, ele não exerceu mais a função de secretário geral da entidade, sendo apenas responsável pela secretaria da ação social, sem nenhuma participação nas decisões diretivas e na emissão do manifesto. Lima apresenta o manifesto  da CNBB a favor dos militares:

 

Atendendo à geral e angustiosa expectativa do Povo Brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e evitaram que se consumassem a implantação do regime bolchevista em nossa Terra. […] Logo após o movimento vitorioso da Revolução, verificou-se uma sensação de alívio e da esperança, sobretudo porque em face do clima de insegurança e quase desespero em que se encontravam as diferentes classes ou grupos sociais, a Proteção Divina se fez sentir de maneira sensível e insofismável. […] Ao rendermos graças a Deus, que atendeu as orações  de  milhões de brasileiros  e  nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que  se levantaram  em nome dos supremos interesses da Nação. [Lima, 1979,p.147]

 

 

        Durante o período  em que os militares estiveram no poder, Dom Helder foi obrigado a dar vários depoimentos e esclarecimentos: teve que provar sua não ligação com os comunistas ou marxistas; que não apoiava movimentos guerrilheiros na América Latina; e contestar outras acusações que tinham a intenção de desmoralizá-lo perante a opinião pública. Mas, o que o incomodava profundamente  era a desconfiança que a hierarquia da  Igreja Católica e o Vaticano demonstravam sobre sua pessoa, principalmente no período pós-golpe de 1964. Apesar da reverência com a qual  lidava com seus superiores da Igreja no Brasil e no Vaticano,  sempre foi firme em sua maneira de pensar e agir. E, por conta disso, sofreu por parte dos seus superiores um patrulhamento clerical, principalmente na época da ditadura militar.

        A pressão e o controle da Igreja e do Tribunal do Santo Ofício se deu em função das suas idéias progressistas e da maneira particular  como ele via o mundo e entendia as relações humanas. Chegou-se ao exagero de questionar quanto à sua presença numa celebração na Igreja presbiteriana, o fato de ver os enamorados nas praças ou afirmar a honestidade dos bailes e permitir que jovens, à noite, dançassem na casa episcopal. Dom Helder apresentava justificativas às acusações que sofria, mas, ao mesmo tempo, lamentava a preocupação do Tribunal do Santo Ofício com questões como estas, ao invés de atentar para o trabalho social realizado na Arquidiocese.  A Sagrada Congregação do Santo Ofício não chegou a abrir um processo  contra ele devido ao bom relacionamento que  mantinha com o Vaticano e com o próprio Papa Paulo VI. Em um de seus encontros com o Papa Paulo VI, em meados da década de 60, o Santo Padre, fez o seguinte comentário:

 

[…] Qualquer ato seu, qualquer palavra sua tem ressonância mundial. É mais importante para a imprensa européia e norte-americana saber o que você pensa do que conhecer o pensamento de qualquer cardeal, mesmo norte-americano. Digo isto não porque tenha o mais leve receio de seu  pensamento ou atuação. Graças a Deus, nos conhecemos há  tanto tempo […] Lembra-se do nosso primeiro encontro? Você cresceu por dentro, mas continua humilde como o quase  seminarista que encontrei em 1950. […] Seu sorriso e seu olhar não envelhecem. A criança continua viva dentro de  você. […] Aproveite esta fama. Sem deixar de ser pastor de  Olinda e Recife – graças a Deus você tem alma de Pastor, lembre-se de que não há, na  Igreja, muitos cuja voz seja  ouvida como a sua […] [Piletti e Praxedes, 1997, p. 359]

 

Paulo VI preocupava-se com a relação de Dom Helder com o governo brasileiro. O arcebispo então lhe contou o episódio da missa campal e mencionou a intenção do governo em removê-lo de Recife. O Papa o apoiou na atitude de negar a celebração da  missa e comentou:

 

“Esta pobre Revolução não resolveu e não resolverá os problemas  fundamentais do País. Falta-lhe envergadura para tanto.” [Piletti e Praxedes, 1997, p.359]

 

        Mas o bom relacionamento entre os dois não foi suficiente para evitar que a Sagrada Congregação dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários, vinculada à Secretaria de Estado, enviasse uma carta a Dom Helder solicitando o texto que pretendia apresentar em uma conferência de bispos latino-americanos, em Mar del Plata, na Argentina em 1966. Neste texto Dom Helder defendia uma educação popular organizada através do Movimento de Educação de Base (MEB) “conscientizadora” que superasse a “mera alfabetização, mesmo que completada com um simulacro de voto”. [Piletti e Praxedes, 1997, p. 359]

        O documento acima nos mostra que a proposta de Dom Helder para o MEB  divergia das idéias de setores conservadores da Igreja e dos interesses da elite da sociedade brasileira. O Vaticano queria evitar confrontos com o governo brasileiro, por isso, ao tomar ciência daquela proposta educacional financiada pelo governo, executada por setores da Igreja e com objetivo de conscientização, enviou um documento ao arcebispo com o intuito de diminuir o seu envolvimento com relação ao projeto educacional e as críticas ao poder vigente. O documento enviado do Vaticano tinha o seguinte conteúdo:

 

É recente a acusação das autoridades federais e eclesiásticas e a leigos católicos de unir-se à oposição, que imputa ao governo o abuso de poder e, em particular, a limitação dos direitos civis. Parece que se deva evitar quanto possa reacender tais danos atritos, durante os quais a pessoa do Exmo. bispo de Recife várias vezes esteve em causa. [Piletti e Praxedes, 1997, p.360]

 

        A preocupação de Dom Helder com a educação remonta aos tempos de padre no Ceará, bem como em toda a sua vida religiosa. No quarto capítulo, abordaremos a criação do Movimento de Educação de Base  (MEB), que se deu em 1961.

        Em relação ao seu pronunciamento, o Vaticano exigia do arcebispo uma postura mais moderada, tanto sobre assuntos de natureza política como em assuntos internos da Igreja. Essas atitudes ambíguas do Vaticano deixaram-no confuso, pois, ao mesmo tempo em que Paulo VI o afagava em seus encontros privados nos anos posteriores, seus auxiliares diretos tentavam enquadrá-lo. Alegar que o Vaticano não estava informado sobre a sua atuação  era impossível, já que entre 1964 e 1970 foram vários os colaboradores de Paulo VI que visitaram a  Arquidiocese de Olinda e Recife.

        Em 1967, quando foi publicada pelo Papa Paulo VI a encíclica Populorum Progressio12, atribuiu-se a Dom Helder a inspiração para essa escrita do Papa. Dom Helder interpretou o documento como algo que iria respaldá-lo em sua atuação social  e política pelas mudanças estruturais na sociedade brasileira e nas relações de exploração  dos países pobres e ricos. Baseado na encíclica, ele iniciou uma nova fase de pregação em suas conferências no Brasil e em outros países. Passou a intensificar as questões mais amplas da exploração capitalista, demonstrando que a expropriação exercida pelos países ricos industrializados sobre os países fornecedores de  matérias-primas da América Latina e África era a mola propulsora da miséria e da violência existentes nessas regiões. Ele enganou-se ao achar que tinha o aval do Vaticano; ao contrário, acentuaram-se o patrulhamento e o controle da Santa Sé sobre suas atitudes e pronunciamentos dentro e fora do Brasil.

        Por meio de uma carta, do principal auxiliar do Papa, Giovanni Benelli, o Vaticano tentou enquadrá-lo, recomendando que se ativesse mais à atuação dentro de sua Arquidiocese, evitando viagens para conferências no exterior, e quando essas acontecessem, antes de pronunciar-se em público, buscasse o consentimento da autoridade eclesial  local. A correspondência oficial dizia:

 

Secretaria de Estado

Nº 136378

Vaticano, 4 de junho de 1969.

Monsenhor

Acaba de chegar-me sua carta de 13 de maio e é muito de coração que lhe agradeço os esclarecimentos que o senhor me traz sobre suas conferências no estrangeiro, ao mesmo tempo em que reafirma sua intenção de servir à Igreja, segundo a vontade do Santo Padre. Sei que são de seu agrado as relações francas e fraternas que o senhor timbra em manter com a Santa Sé. Por minha vez, conhecendo as dificuldades que suas tomadas de posição podem suscitar fora desua  Diocese, confirmo-lhe o desejo da Santa Sé de vê-lo sempre consultar, antes de suas conferências, a autoridade eclesiástica local a respeito do conteúdo e da oportunidade de suas intervenções. Quanto à diocese do Recife, cuja pesada responsabilidade lhe cabe, o senhor conhece melhor do que eu o imenso campo de apostolado que se abre sem cessar a seu pastor, para a formação do clero, dos seminaristas, dos militantes leigos, de todo o povo cristão, dado que o aprofundamento da fé deve seguir passo a passo com o engajamento social. Para este trabalho pastoral, em colaboração com seus colegas de episcopado brasileiro, faço questão de assegurar-lhe meus votos mais calorosos  e minha fervorosa oração. Queira crer, monsenhor, nos sentimentos que me inspiram minha fiel amizade e meu respeitoso devotamento em N.S. Giovanni Benelli.

[Piletti e Praxedes, 1997, pp. 361-362]

 

Ao ler a carta, Dom Helder teve, num primeiro momento, uma reação dramática:

 

“Tive a sensação angustiante de uma facada no coração.” [Piletti e Praxedes, 1997, p.362] Um sentimento de tristeza e humilhação tomou-lhe conta: “Pensei concretamente em José. Venceu a Graça. Devo, inclusive, reconhecer que a pastoral tem avançado, mas, pessoalmente, posso dar-me muito mais a ela. Vou tornar ao pé da letra as indicações da Santa Sé […] Voltou a paz. Voltou a alegria. Ri de mim: no íntimo, eu pensava, talvez, que a Santa Sé voltasse atrás. [Piletti e Praxedes, 1997, p.362]

 

        Dom Helder foi advertido várias vezes, quanto ao  Vaticano  e  ao  Papa  Paulo VI,  em função de sua postura progressista e de seus depoimentos de cunho político e social que divergiam dos princípios dos grupos mais conservadores da Igreja. O mesmo acontecia em relação à CNBB, principalmente pós-64, quando a ala progressista não ocupava mais cargos diretivos na entidade. Em meados de 1968, o arcebispo de Diamantina, Dom Geraldo Proença Sigaud, conservador e integrante do movimento de extrema direita – Tradição, Família e Propriedade – fundado em 1960 pelo Dr. Plínio Correia de Oliveira, acusou Dom Helder de fazer parte de uma minoria subversiva do clero brasileiro simpatizante de Marx e do comunismo.

        Essas acusações serviram para que a CNBB, numa reunião da Comissão Central  em 1969, assumisse outras acusações de Dom Sigaud ao arcebispo, tais como: de ter o teólogo José Comblin como mentor intelectual; as suas tentativas de manipular o Núncio, a CNBB e o presidente da entidade; a de incentivar a dissensão entre grupos da CNBB; a questão do financiamento de suas viagens ao exterior; os seus posicionamentos sócio-econômicos; a defesa do modelo político-econômico Tcheco para o Brasil e a América Latina; o apoio ao fim do bloqueio norte-americano a Cuba; a aprovação da entrada da China Comunista na ONU; e se ele aceitaria  participar de uma  palestra na Escola Superior de Guerra.

        A resposta de Dom Helder, diante desse interrogatório dirigido pelo cardeal Dom Agnelo Rossi, presidente da CNBB, foi  tranqüila e transparente. Não havia  acusação sem explicação. Afirmou que realmente José Comblin era um grande amigo seu e o auxiliava como sociólogo e teólogo, e que não tinha nada a declarar em relação às acusações de manipulação e cisão na CNBB. As viagens eram pagas pelas entidades que o convidavam. Seu posicionamento sobre questões sócio-econômicas era baseado em informações de técnicos de sua confiança e que em hipótese alguma defendeu algum modelo pronto para a América Latina. Sua defesa pelo fim do bloqueio econômico dos Estados Unidos a Cuba e a integração da China Comunista à ONU, eram sugestões do Catholic Inter-American Cooperation Program, CICOP, do Bureau Latino-Americano da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos. Ele também as defendia, pois acreditava na democracia como forma de se chegar a um mundo mais justo. A respeito da palestra na Escola Superior de Guerra, afirmou que precisaria ser convidado e ter a certeza que teria plena liberdade para falar e ser ouvido.

        Apesar do controle da Igreja Católica e do Vaticano sobre Dom Helder, o respeito e a cordialidade permearam  suas relações com estas entidades. No início da década de 70, conseguiu uma audiência particular com o Papa Paulo VI. Neste encontro, marcado pelo respeito mútuo, ficou determinado que Dom Helder iria realizar quatro viagens internacionais por ano, continuando a pedir consentimento  prévio da autoridade eclesiástica do local visitado. Dom Helder não deixaria de informar o conteúdo de suas palestras e conferências também à CNBB e cancelaria qualquer evento fora do país se assim a entidade o desejasse. Nesta visita, foi obtida também a aprovação do lançamento do movimento Ação, Justiça e Paz em todo o mundo, pois no Brasil era inviável prosperar esse movimento em função da conjuntura política da época.

        Os confrontos com os militares, com setores da Igreja católica, representado pela ala conservadora da CNBB, como também com o Vaticano, foram momentos muito difíceis na vida de Dom Helder. Contudo, seus princípios, assim como sua conduta fraterna jamais desapareceram. Esses enfrentamentos não lhe tiraram a motivação de seguir com seus sonhos na esperança de se construir um mundo menos desigual. Na sua praticidade de ver o mundo e as relações entre os homens, às sociedades e as nações, ele construiu sonhos possíveis de serem alcançados. Em suas reflexões, palestras e escritos sempre demonstrou ser um sonhador,  que vinculava os sonhos com a realidade, onde os objetivos a serem atingidos estavam ao alcance dos homens, desde que esses agissem e lutassem para alcançá-los.

        Havia uma radicalidade em seus sonhos, no sentido de aprofundamento e essência. A pureza do seu pensamento em defesa de suas idéias e princípios deixava a impressão de uma postura radical, na pior concepção da palavra. Mas na verdade, sua radicalidade estava na preocupação de ir às raízes dos problemas que afligiam a humanidade. Não sonhava com soluções paliativas; ao contrário, tinha propostas de mudanças estruturais, que resolvessem problemas crônicos que afligiam os menos favorecidos há anos, o Brasil e outras partes consideradas periféricas no mundo.

 

 

Citações

 

1 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), idealizada e fundada pelo padre Hélder Câmara, na cidade do Rio de Janeiro, em 1952. A CNBB surgiu com o intuito de aproximar os bispos brasileiros para que juntos, de maneira coesa e organizada, pudessem a partir daquele momento compreender e propor soluções  concretas para os problemas da Igreja e da sociedade brasileiras. A entidade promoveu a centralização do episcopado e a renovação do catolicismo no país. Sempre demonstrou preocupação com os temas relacionados com justiça social, condição de vida das camadas sociais desfavorecidas e estruturas econômico-sociais marginalizadoras.

 

2 Milagre Brasileiro (1968-1973) denominação da política econômica do ministro da fazenda Delfin Neto, caracterizada pelo intenso e rápido crescimento econômico – liderado pelo setor  industrial – obtidos através de grandes investimentos oriundos dos recursos financeiros dos bancos internacionais.

 

3 José Ernanne Pinheiro, sacerdote, trabalhou dezenove anos na Arquidiocese de Olinda e Recife (1967-1986) na formação de seminaristas, como Vigário Episcopal dos leigos, coordenador de Pastoral e diretor do Instituto de Teologia do Recife (ITER).  Foi diretor do Centro Cultural Missionário, em Brasília, e atualmente é  assessor do setor de “política” da CNBB.

 

4 O Movimento de Educação de Base (MEB) foi um movimento nacional, criado em 1961 pelo presidente Jânio Quadros em acordo com o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Hélder Câmara, o bispo auxiliar de  Natal, Dom Eugênio Sales e o bispo de Aracaju, Dom José Távora. O MEB surgiu da experiência das  escolas radiofônicas lançadas por Dom Eugênio Sales, em Natal, em 1958. No caso do MEB, o Estado financiava os custos e a Igreja executava o programa de educação básica. Este programa visava à alfabetização, à mobilização social e à politização. Isso era feito através da conscientização, entendida como um despertar da consciência. Esse despertar da consciência era levar o cidadão a perceber o seu valor humano e a sua capacidade de aprender, agir e crescer, e assim promover mudanças, ser agente da sua própria história e traçar o seu destino.

 

5 A Juventude Universitária Católica (JUC)  foi criada em 1930, como uma extensão da Ação Católica Brasileira (ACB). No seu início, foi um movimento conservador, clerical, cujo objetivo era cristianizar a elite jovem. A partir da década de 50, a JUC tornou-se mais autônoma e com  maior envolvimento com os universitários e os grupos de esquerda. Em 1959, a conferência nacional da JUC decidiu assumir a ação política como seu compromisso evangélico. Na década de 60, a JUC esteve ativamente envolvida com os católicos progressistas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB)  e o Partido Comunista do Brasil (PC do B),  constituindo-se os principais grupos de esquerda do país.

 

6 Ação Católica Brasileira (ACB) foi instituída oficialmente em 9 de junho de 1935. Esta entidade possui várias seções: Juventude Católica, Juventude Estudantil Católica, Juventude Universidade Católica, Juventude Operária Católica. A ACB volta-se para o apostolado em geral e em especial para o apostolado social.

 

7 Comando de Caça aos Comunistas (CCC), organização de extrema-direita que surgiu em 1968, em apoio à Ditadura Militar. Tinha como principal função perseguir todos os cidadãos (operários, professores, estudantes, intelectuais, artistas e religiosos) e entidades (organização de estudantes, sindicatos, universidades, teatros e igrejas), considerados  subversivos e opositores ao regime. Suas ações se deram em todo Brasil. 

 

8 A Doutrina da Segurança Nacional foi estruturada nos cursos da Escola Militar, e foram criados para aprimorar as Doutrinas de Segurança Nacional e que se consagraram inteiramente a essa tarefa, por exemplo, a Escola Superior de Guerra no Brasil. Através da Doutrina da Segurança Nacional, os militares tinham o dever de defender a nação dos inimigos internos tanto quanto dos externos. Em 1967, o presidente Gal. Castelo Branco, decretou a Lei de Segurança Nacional (LSN) tornando a segurança nacional um dever cívico, estabelecendo as políticas repressivas que deram sustentação ao regime.

 

9 Concílio Vaticano II (1962-1965) foi realizado em Roma, Itália, sendo um dos mais importantes eventos do catolicismo em toda a sua história. Foi preparado pelo papa João XXIII, morto em 1963, que presidiu apenas a primeira sessão do conclave. O papa Paulo VI deu continuidade ao processo de renovação da Igreja. O Concílio colocou a Igreja frente a frente a si mesma e às suas relações com o mundo. Houve uma grande  preocupação do Concílio com a participação dos leigos nas ações da Igreja e o tom de esperança permeou as discussões conciliares. Apesar do Concílio ser um evento europeu, foi na América Latina que as suas propostas – maior participação dos leigos, justiça social, maior sentido de comunidade, maior co-responsabilidade dentro da Igreja e relações de maior proximidade entre o clero e o povo – foram colocadas em prática com maior ênfase. A Igreja latino-americana, a partir do Concílio, passa a ser referência para as Igrejas de outros continentes, porque, a partir daquele momento, ela faz a opção pela “Igreja dos Pobres”. E teve como  principal voz defensora dos pobres e injustiçados,  nos bastidores do Concílio, Dom Hélder Câmara.

 

10 A Igreja Católica se faz presente em nossa história desde a chegada dos portugueses no Brasil, em 22 de abril de 1500, e com a  celebração da primeira missa em 26 de abril de 1500. Quando citamos a hierarquia da Igreja nos referimos  ao alto clero, isto é,  aos cardeais, arcebispos e bispos que, ao longo da história do Brasil, estiveram sempre ao lado dos grupos sociais que detinham o poder político e econômico no Brasil Colônia, Império ou República.

 

11 A Doutrina Social da Igreja tem na encíclica “Rerum Novarum”, de Leão XIII, uma sugestiva sistematização. Esta encíclica passa a servir de parâmetro para outras encíclicas sociais. 

    

12 A Encíclica Populorum Progressio foi publicada pelo papa Paulo VI em 1967. Tal documento não só veio para reafirmar a Doutrina Social da Igreja, como também pode ser considerado uma extensão do Concílio Vaticano II encerrado em 1965. Está encíclica teve como principal preocupação as questões da miséria e do  subdesenvolvimento que afligiam milhões de pessoas no mundo. Seu objetivo foi abrir horizontes de esperança diante de um panorama de dor e sofrimento. Um dos aspectos mais abordados pelo documento foi a necessidade da ajuda das nações desenvolvidas às nações pobres e as em vias de desenvolvimento. O papa Paulo VI enfatizou a necessidade  da intervenção  da Igreja,  para  garantir a igualdade entre os homens ao final do século XX.  

 

Referências Bibliográficas

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.

CASTRO, Marcos de. Dom Hélder: Misticismo e Santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,  2002.

INSTITUTO NACIONAL DE PASTORAL (org.). Presença Pública da Igreja no Brasil– Jubileu de Ouro da CNBB. Edições Paulinas, São Paulo, 2003.

LIMA, Luis Gonzaga de S. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para uma transformação. Petrópolis: Vozes, 1979.

MAGALHÃES, Valdo de Barros. A Prisão de Padres Estrangeiros no Brasil 1968 a 1980: Uma Controvérsia de Interesses entre a Igreja Católica e o Regime Militar. 1998. Dissertação (Mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.

PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Hélder Câmara: Entre o Poder e a Profecia. São Paulo: Ática, 1997.

SERBIN, Kenneth P. Diálogos na Sombra:Bispos e Militares, Tortura e Justiça Social na Ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

  O texto: Prof. Martinho Condini. Mestre em Ciências da Religião e doutor em Educacao ambos pela PUCSP. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara. Publicou pela Paulus Editora \’ Dom Helder Camara um modelo de Esperança, \’ Helder Camara um Nordesino Cidadão do Mundo\’, \’ Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire\’ e o dvd \’ Educar para a Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire\’.

Deixe uma resposta