Memória em Palavras – A Atualidade dos Discursos de Dom Helder Camara ao Redor do Mundo – 1970 (VIII)
(Após ter dedicado atenção ao assunto das “Minorias Abraâmicas” nas últimas 14 semanas, retomo a temática da atualidade dos discursos de Dom Helder, muitas vezes ligados, direto ou indiretamente às Minorias Abraâmicas)
Impossível desenvolvimento sem juventude (1)
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Os jovens que tem verdadeiras possibilidades para
ajudar na marcha do desenvolvimento são minorias, existentes por toda a parte. Minorias que eu chamo de Abraâmicas, porque como Abraão esperam contra toda a esperança, minorias que têm duas marcas indispensáveis:
exigem justiça como condição de paz, mas, em lugar de violência armada, que conduz uma escalada de violência, adotam a violência dos pacíficos.
Primeiro apresentarei o programa mínimo da Ação, Justiça e Paz, união das Minorias Abraâmicas de jovens e adultos. Apresso-me em dizer-lhes que não se trata de partido político, nem de movimento de um homem de boa vontade, para além das raças, das línguas, das religiões, ou se tratará de um fracasso a mais. Ou a Ação Justiça e Paz é segurada com as duas mãos pelas Minorias Abraâmicas, sobretudo no seio da juventude, ou ela não passará de bela utopia.
Eis o mínimo exigido pelas Minorias Abraâmicas, dignas deste nome
- Nada de reformismo: é preciso, sem demora, mudança das estruturas sub-
humanas.
Há pessoas que dizem ou pensam que aquilo que exigiu séculos para estruturar-se não pode, nem deve mudar em dias, em meses, ou mesmo anos. É o reformismo.
Há pessoas que chegam a utilizar palavras como as de Cristo: “Felizes os pobres: deles é o reino do céu”, ou “pobres, sempre haverá no meio de vocês”, como quase uma proibição para tentar abolir a miséria.
Quem viu criaturas humanas mergulhadas em condições verdadeiramente subumanas, não pode admitir a ideia de adiar a tentativa de arrancá-las dali, como se as víssemos afogando-se na lama.
A miséria é um ultraje no Criador. Se há séculos de condições de miséria, isto quer dizer que há séculos atrás, séculos de dívidas, e que urge apressar o passo. Impossível aceitar a ideia de que haja, ao lado de homens e super-homens, sub-homens, homens de segunda classe, nascidos para a escravidão e para a miséria.
- Mudança de estruturas dos países subdesenvolvidos supõe mudança de estruturas dos países desenvolvidos.
Os que nasceram em países ricos, os que aí residem, se ouvirem dizer que mudanças de estruturas dos países sub-desenvolvidos supõe mudanças das estruturas dos países desenvolvidos, terão, salvo milagre, reações curiosíssimas. Começa, por duvidar de ter escutado bem ou compreendido. Guardam a impressão de uma pilhéria. Depois, se se trata do jogo da verdade, eles se perguntam porque há de abandonar o próprio conforto e a própria segurança para mudar o imutável: miseráveis, cuja miséria, em parte, é consequência de inferioridade racial; em parte, é consequência de preguiça e desonestidade. É preciso ajudá-los a compreender e aceitar que a riqueza dos países desenvolvidos se alimenta da miséria dos países pobres. Supondo neles um mínimo de sinceridade e boa vontade, é preciso dispor de estatísticas, de informações, de fatos indiscutíveis. É preciso desmontar a inverdade do racismo e fazer ver que os brancos ficassem sem saúde, sem alimentação, sem roupa, sem casa e sobretudo sem esperança, perderiam a coragem, e também eles, pereceriam preguiçosos. É preciso demonstrar que os desonestos, nos países pobres são, quase sempre, traidores, corrompidos pelo dinheiro de fora. (…..) - É preciso denunciar as injustiças, presentes por toda a parte, como a violência n.º 1
Jovens ajudem a denunciar as injustiças existentes nos países subdesenvolvidos, mas também nos países desenvolvidos. Ajudem a denunciar as injustiças nas relações entre o mundo desenvolvido. Estas injustiças, presentes por toda parte, são a violência n.º 1.
Se chegarmos a um acordo sobre este ponto e os jovens dos países mais diversos, das raças, das línguas, das religiões mais distantes, partirem daqui decididos a combater as injustiças como ponto de partida de todas as violências; se vocês partirem convictos de que, sem justiça, jamais teremos paz verdadeira e duradoura, teremos aproveitado bem o nosso tempo. - Jovens, a violência dos pacíficos fica nas mãos de vocês
Direita e esquerda bem podem se unir para rir da violência dos pacíficos. As duas estarão de acordo para interpretá-la de coragem, como pusilanimidade. Sejamos honestos. Não esqueçamos que nem a esquerda, nem a direita têm soluções. Quem tem a solução? Quem pode falar como mestre da verdade, senhor das fórmulas? Todos tateamos na sombra.
Jovens, vocês que exigem a justiça sem aceitar a violência armada – que parece solução sem solução – jovens que, para além das raças, das línguas, das religiões, sentem a urgência de um mundo mais justo, mais humano e mais fraterno, guardem essas três interrogações finais:
Não creem que a escalada da violência se tornará inaceitável não só para os privilegiados e para os governos, mas também para aqueles que fizerem a opção pela violência?
- Não creem na força moral, eficaz e válida, representada por todos aqueles que exigem justiça, sem aceitar a violência armada e que são milhões para além das línguas, das raças, dos partidos políticos e das religiões?
- Não creem, que a violência dos pacíficos chegará a suscitar a imaginação criadora a encontrar fórmulas para demonstrar o colonialismo interno nos países subdesenvolvidos e as injustiças, em escala planetária, na política internacional do comércio?
Apresentamos, de outra maneira, as três interrogações finais: ? A última palavra pertence à mentira ou à verdade?
? O homem será sempre tão estúpido para fazer a verdade depender da violência armada?
? A inteligência nos conduz ao desespero e ao suicídio ou à esperança e a uma comunidade solidária e fraterna?
(Conferência por Dom Helder Camara, arcebispo de Olinda e Recife (Brasil), preferido durante o Congresso Mundial “Juventude e Desenvolvimento” em Salzburg (Áustria) em 2-.05.1970). Em: DOM HELDER CAMARA, Circulares Ação Justiça e Paz. Volume V – Tomo I, p.p. 336-339. (Editora CEPE, Pernambuco, 2022)