Causos do Dom: Reitor Apreende Poemas de Helder

Causos do Dom: Reitor Apreende Poemas de Helder

Ivanir Rampon

O segundo reitor do seminarista Helder foi holandês Tobias Dequidt. Pe. Tobias permitia que Helder lhe fizesse perguntas e apresentasse sugestões para melhorar o processo formativo dos futuros sacerdotes.

Dom Helder contava, por exemplo, que cada seminarista tinha, na sala de estudos, uma mesa com tampão que se fechava com cadeado. Nas mesas ficavam os livros e o material escolar. O cadeado tinha duas chaves: uma permanecia com o seminarista e outra com o reitor. Um dia, bem cedo, quando Helder foi buscar os livros de oração, o colega Luiz Braga lhe transmitiu um recado do reitor: se ele precisasse de algum papel que estivesse faltando deveria pedir ao Pe. Tobias. Ao abrir o tampão, Helder percebeu que estava tudo revirado. Fez de conta que nada tinha acontecido.

Uma ou duas semanas depois, como ainda não havia se manifestado sobre o ocorrido, o reitor lhe perguntou: “Você não está precisando de seus papéis?”.

Helder, então, disse-lhe: “Padre reitor, posso responder como sempre falo, de coração aberto? […] O senhor sabe por que não fui procurá-lo? Porque tenho um grande respeito ao meu reitor, e lhe quero muito bem. Sinto pelo senhor respeito, admiração e simpatia humana. Tanto que prefiro antes abrir mão dos meus papéis que ir buscá-los com o senhor. Acho que o senhor se sentiria mal em reconhecer que de madrugada, como um ladrão, foi até a sala de aula com um lampião para abrir minha mesa e levar meus papéis… Não, não. Não quero submetê-lo a esta humilhação”.

O reitor, comovido, lhe disse:

– “Venha cá, você tem razão. Realmente é algo vergonhoso… e não o farei de novo. Não, não, jamais voltarei a fazer isto”. E acrescentou: “Olha, meu filho, em seu armário estavam estes poemas…”.

Helder então lhe disse: “Como o senhor reitor tem coragem de falar contra alguns poemas? Logo o senhor, um poeta?”.

– “Como que você sabe disto? Como?”, perguntou o reitor.

– “Poeta, padre reitor, não é só quem faz versos. É quem vibra diante da beleza! O senhor é incapaz de deixar de vibrar. O senhor lê uma página bela, o senhor vibra, o senhor vê um dia lindo, o senhor vibra, seus olhos cintilam. Eu o considero um poeta. E logo o senhor, um poeta, vai falar contra os meus poemas?”.

– “Sim, precisamente por isso” – disse o reitor. “Eu o vejo como um sacerdote, sinto em você a vocação sacerdotal, e sei os perigos que está correndo por causa da poesia. E quero protegê-lo deles. A imaginação… Eu ia perdendo a vocação por causa da imaginação”.

– “Ah, padre reitor, perdão.” – disse o seminarista. “A imaginação é dom de Deus. Entre nós, quando se quer chamar alguém de um pobre homem, sem inteligência, dizemos que não tem imaginação. Porque imaginar é participar de uma forma totalmente especial no poder criador de Deus.” E acrescentou: “Como o senhor pode ter medo, como pode estar contra a imaginação, um dom de Deus?”.

– “Ah, meu filho, é que a poesia nos leva longe… mais do que queremos”.

Então, Helder propôs: “O padre reitor é tão leal que lhe digo: o senhor não me convence, mas como também não tem a pretensão de me convencer, vamos fazer um pacto de honra: até minha ordenação não voltarei a fazer o que o senhor chama de poesia, que eu chamo de meditações. Mas o senhor deverá confiar em mim e não ficar fiscalizando minhas coisas nem mexendo em meus papéis. Da minha parte, prometo: nenhuma poesia mais até minha ordenação”.

Em seguida, o reitor acrescentou: “Você faz por um tempo o sacrifício da poesia, mas não definitivamente”. E explicou: “Aqui nós não temos inverno, não conhecemos a neve. Se você estivesse na Europa e a neve caísse, seria ingênuo pensar que ela anuncia a morte. A morte? Não: é a preparação para a primavera. Logo se verá”.

Em seguida, fazendo um gesto com a mão, o reitor disse: “Está aqui a sua chave”.

Helder, então, refutou: “Não, não quero isso só para mim. Não aceitaria um privilégio desses”.

O reitor, quase se impacientando, retrucou: “O senhor pensa que todo o mundo tem a sua maturidade?”.

– “O seu engano, padre reitor, é pensar que os jovens não têm maturidade. O seu engano é não confiar na juventude. Se o senhor fizer um apelo na base da lealdade, garanto que saberemos cumprir”.

O reitor se deu por vencido e resolveu: “Tudo bem, hoje mesmo vou entregar as chaves para todos”.

Até a ordenação de Helder, as duas partes cumpriram o acordo. Depois da conversa, ao sair, o seminarista percebeu lágrimas nos olhos do homem.

Dois dias depois, Helder recebeu a visita de sua mãe Dona Adelaide e esta percebeu que o filho estava um tanto desanimado, em crise vocacional, chateado por não poder mais escrever suas Meditações. Tentou encorajá-lo, usando argumentos que tocassem o seu coração. No final da conversa, disse as palavras que ela sempre usava para expressar seu apoio materno, quando o filho mais precisava – eram como palavras mágicas, que levantavam o ânimo, animavam a esperança, transmitiam energia, iluminavam as trevas: “Coragem, José!”. Durante a sua vida, Helder escreveu milhares de Meditações do Pe. José, sendo que algumas temos acesso por livros, cds, sites, circulares…

Dom Helder foi um homem criativo, cheio de imaginação – dom de Deus. Durante o Concílio Vaticano II, o teólogo Ives Congar escreveu: “é um homem não somente muito aberto, mas também cheio de ideias, de imaginação e de entusiasmo. Há aquilo que falta aqui em Roma: a visão”

Adendos

1) O primeiro biógrafo de Dom Helder, José de Broucker, afirma que teria sido o reitor que pedira para o seminarista ficar um tempo sem escrever, e o seminarista teria respondido: “Padre… é terrível isto que me pede […]. Escrever poesia é como viver, é como falar…” (Camara, H.  Le conversioni di un vescovo, 38-40).

2) Em outra ocasião, Dom Helder dá a entender que o reitor tinha certo medo de que ele deixasse de estudar filosofia para fazer poesias (Id. Chi sono io?, 18-19).

Fonte: Ivanir Antonio Rampon, O caminho espiritual de Dom Helder Camara. São Paulo: Paulinas, p. 17-19, 2013.

Outras fontes

Benedicto Tapia de Renedo. Hélder Câmara: proclamas a la juventud. Salamanca: Ediciones Sigueme, p. 11-12, 1976.

Dom Helder Camara. Le conversioni di un vescovo. Torino: Società Editrice Internazionale. Prefazione di José de Broucker, p. 38-40. [Original Lés conversions d’évêque: Editions Seuil, 1977].

Hélder Câmara. Chi sono io? A cura di Benedicto Tapia de Renedo presentazione di Ettore Mesina. Assisi: Cittadella Editrice, p.18-19, 1979.

Ives Congar. Diario del Concilio 1960-1963. Milano: San Paolo, v. I, p. 167-168, 2005.

José de Broucker. Helder Camara. La violenza di un pacifico. Roma: Edizioni Saggi ed esperienze, Tipografia Città Nuova, p.12-13, 1970.

Nelson Piletti e Walter Praxedes, Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia. São Paulo: Editora Contexto, p. 60-61, 2008.

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