Memória em Palavras – Ainda sobre o Volume V das Obras Completas – Ação, Justiça e Paz

Memória em Palavras – Ainda sobre o Volume V das Obras Completas – Ação, Justiça e Paz

Por Ivone Gebara

Circulares de Dom Helder Câmara: um convite à leitura.

Tenho certeza de que muitos leitores/as, sobretudo os mais jovens, nem podem imaginar a riqueza que existe nas Circulares de Dom Helder. Dirijo-me especialmente aos mais jovens que não o conheceram de perto porque precisam se aproximar mais e melhor de alguém que faz parte da História das múltiplas lutas pelos direitos e pela dignidade humana de ontem e de hoje.

Dom Helder Câmara apostava de maneira particular na juventude e tinha, como ele mesmo dizia, uma predileção e uma esperança de que eles seriam capazes de vencer  à sua maneira a nova versão dos sete pecados capitais do mundo de hoje. Sabemos bem que esses pecados tradicionalmente eram avareza, gula, inveja, ira, luxúria, preguiça e soberba e era cada indivíduo que acusado por eles tinha que confessar-se e reconciliar-se com Deus. Embora esses pecados ainda persistam habitando os seres humanos foram transformados por Dom Helder em pecados sociais. São eles: racismo, colonialismo,  guerra,  paternalismo,  farisaísmo,  alienação e  medo.(Cfr 12ª circular p. 38 e segs.) Lendo as circulares se pode descobrir os novos sentidos dos pecados presentes nas muitas seduções que nos acometem individual e coletivamente.

Dom Helder acreditava que a juventude tinha a capacidade de romper com velhos esquemas dogmáticos e abraçar as mais lindas causas em favor do bem da humanidade. Por isso, esse breve texto segue a inspiração e a aposta de Dom Helder em relação às pessoas que acolhem rever suas ações e propor caminhos pequenos e grandes para uma melhor convivência no planeta. Nessa linha, à título de exemplo indico três textos fundamentais que abordam questões atuais e que lhes darão vontade de ler muitos outros a fim de lutar contra a nova versão dos pecados capitais que nos afligem e matam.

Texto 1: Sobre a inteligência artificial ( Tomo l. I, p.224  e 225)

Imaginem vocês que um velho senhor, Dom Helder, antes mesmo da existência da expressão ‘inteligência artificial’ já falava sobre seu conteúdo e nos alertava sobre seu desenvolvimento! Para entender isso é preciso saber que Dom Helder gostava muito de ler e de se informar sobre a marcha do pensamento e das diferentes pesquisas cientificas em curso. Procurava anotar pequenos ou grandes parágrafos que o impressionavam e lhe davam matéria de reflexão, ação e oração. Essas anotações fizeram parte de suas Circulares.

Em 1970 ele estava lendo o livro do sociólogo francês François de Closets sobre os perigos do progresso ( cf François de Closets, ‘En danger de progrés’, Paris, Denoel, 1970). O autor aborda questões sobre a mudança do trabalho, o controle da energia solar, a mudança no uso da matéria prima, o papel das máquinas e as consequências de tudo isso na organização da sociedade e na convivência humana. Dom Helder conversava com as questões do autor introduzindo outras e refletindo sobre essas possibilidades que hoje são moeda corrente em nosso mundo. E tudo isso para nos dizer o quanto os cristãos e todas as pessoas de boa vontade devem pensar nessas questões à luz de uma ética inclusiva e em diálogo com o mundo. A ciência nos ensina a melhor compreender o mundo e nossas entranhas a nos aproximarmos dos caídos nas estradas do mundo.

Texto 2: Sobre a meditação ecológica (Tomo II, p.42 a 48)

Imaginem um velho senhor, Dom Helder, que fazia poesias falando de árvores, ventos e silêncios como se estivesse mergulhado nos problemas ecológicos do mundo de hoje e tirando lições extraordinárias deles. Suas meditações ecológicas são poemas espirituais que tocam o mais profundo dos seres humanos e nos convidam ao silencio. Imaginem escutar o silêncio! Parece uma contradição! Porém, para Dom Helder o silencio fala com o agitar dos ramos movidos pelos ventos, com o cantar da correnteza, com o palpitar das estrelas. Ele nos diz que não basta ‘não falar’ para entrar no silencio. É preciso bem mais do que isso…

No silencio a gente pode ouvir outras vozes e tentar calar os muitos ruídos que vivem em nós. Silenciar a ambição pessoal que bloqueia a ascensão social de outros, o amor-próprio que facilmente é ferido e fere outros, as muitas desconfianças que temos uns dos outros, as imposições que fazemos por interesse próprio e tantas outras barreiras que erguemos obedientes ao nosso egoísmo. Silenciar é deixar-se tomar por vozes antes inaudíveis e que quando irrompem em nós nos transformam e nos tornam discípulas e discípulos da vida.

Dom Helder abre caminhos de encontro com nossa intimidade e ao mesmo tempo abre caminhos para o cuidado e o amor à natureza que é também nosso próximo vital. Revela com imenso carinho a importância das sombras em nós, das dúvidas, dos medos que nos possibilitam o conhecimento de nós mesmos e a apreensão mesmo tênue de que há sempre algo mais, ‘ainda há’, ‘ainda há’, ainda há’.

O caminho é largo e sinuoso, mas pouco a pouco começamos a perceber que somos um corpo único, interdependente, sempre em relação, um corpo que só sobrevive com a ajuda mútua e a solidariedade renovada cada dia.

Texto 3: Sobre as Fake News. (Tomo III, p. 10 a 13)

Imaginem um velho senhor, Dom Helder, que entende de muitos assuntos, que se encontra com pessoas importantes do mundo, que é indicado para o prêmio Nobel da paz, que conversa com reis, príncipes, papas, presidentes das muitas Repúblicas e igualmente com jornalistas e divulgadores de opinião. Sua perspicácia e atenção à vida fizeram com que percebesse como se organizavam as notícias de seu tempo muitas das quais poderiam ser chamadas de ‘Fake News’ como as que nos atormentam hoje.

Num texto escrito em 1971, começa nos alertando que a pretensa liberdade dos jornalistas, repórteres e outros divulgadores de notícias acaba onde começam os interesses da empresa onde trabalham.  Eles recebem instruções para jamais atingir interesses empresariais maiores. Estes têm que ser prioritariamente preservados. As notícias têm que ficar restritas às ordens recebidas pelos donos da comunicação e os jornalistas podem então garantir seus salários e outros benefícios. Tudo deve entrar nos interesses das instituições que mantêm não só o veículo de notícias, mas as muitas empresas que o financiam. Por isso, as palavras, os ângulos das fotos, as alusões, as críticas, os elogios, as citações, as redações devem entrar num plano pré-estabelecido. Isto nos convida a ter um senso crítico em relação a todas as notícias que chegam até nós. Isto nos dá chaves para entender melhor as intenções das Fake News de hoje que nos invadem. Dom Helder nos alerta a não cairmos na tentação da crença ingênua e da seriedade de todas as notícias recebidas.

Nessa linha ele nos convoca a perceber interesses maiores movendo os meios de comunicação e reconhece que há minorias, parte das ‘minorias abraâmicas’ presentes nos meios de comunicação que ousam extrapolar as regras capitalistas estabelecidas. São punidos, desempregados, mas nos garantem a salvaguarda da dignidade humana, nos garantem que há sempre mais do que é oficialmente escrito e falado. Que seria o mundo sem essas minorias? Que seria o mundo se alguns não levantasse sua voz contra as muitas prisões de nosso tempo?

Mostrei a vocês apenas alguns lances da riqueza das Circulares de Dom Helder à sua família Mecejanense, ou seja, circulares ou escritos para nós que vivemos em comunhão com ele no espirito das bem-aventuranças de Jesus de Nazaré e da grande família que busca o bem e a justiça para todos.

Nessa linha gostaria de propor que as Circulares servissem de motivo e de ocasião para que novos grupos de irmãs e irmãos, de jovens e velhos, se organizassem para ler e meditar as circulares à luz dos desafios de hoje, na defesa do direito e da justiça  para os mais oprimidos e excluídos de nosso mundo. Seria uma forma original e comunitária de vencer os pecados capitais que nos assolam e nos fazem ter medo de nos expormos uns aos outros e participarmos qualquer que seja a nossa idade, nossa formação, nossa identidade, nossa etnia, nossas possibilidades na grande aventura humana de amarmo-nos uns aos outros hoje e sempre. Seria uma forma de guardar a memória de Dom Helder Câmara presente no meio de nós.

Grande abraço,

Ivone Gebara

(Trabalhei com Dom Helder como Professora do Instituto de Teologia do Recife por muitos anos.)

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