Memória em Palavras: Obras Completas – Volume V – Ação, Justiça e Paz

Memória em Palavras: Obras Completas – Volume V – Ação, Justiça e Paz

Em novembro de 2022, durante o XVII Congresso Eucarístico Nacional, no Centro de Convenções, em Olinda, foi lasnçado, pela Companhia Editora Nacional, o Volume V das Obras completas – Ação, Justiça e Paz, com três tomos.

Publicamos abaixo o prefácio do monge Marcelo Barros, para que quem ainda não conhece a obra ficar por dentro do pensamento de Dom Helder nessa área de fundamental importância na garantia dos Direitos Humanos: Ação, Justiça e Paz.

Na noite do mundo, uma luz que nos chama

Prefácio de Marcelo Barros

A publicação do 5o volume das cartas circulares, escritas por Dom Helder Camara em suas vigílias noturnas, vem enriquecer a já preciosa coleção de cartas, discursos, documentos e livros que Dom nos deixou como herança.

Este novo volume vem dividido em três tomos e percorre as vigílias escritas de janeiro de 1970 a julho de 1971. Elas testemunham um momento preciso da história do Brasil e da Igreja Católica no Nordeste. Vivíamos em uma ditadura militar que, sob o pretexto de segurança nacional, reprimia violentamente qualquer dissidência.

Em suas circulares, escritas nas madrugadas de vigília,  para o grupo de amigos e amigas que o auxiliavam em sua tarefa de propor ao mundo o projeto divino de justiça, paz e irmandade universal, Dom Helder nos revela a sua alma. Por sua defesa dos direitos humanos e a inquietação profética de testemunhar ao mundo o evangelho do reinado divino na terra, ele sofreu muitas incompreensões. Foi atacado por jornalistas e intelectuais famosos como Davi Nasser, Nelson Rodrigues e Amaral Neto. Apesar de sempre se pronunciar contra o comunismo que acusava de ser dogmático e os impérios socialistas, que julgava tão opressivos quanto os impérios capitalistas, havia sempre fanáticos e desonestos que o acusavam de comunista, subversivo e patrocinador de uma revolução violenta.

Nos anos em que o Dom escreveu essas circulares (1970 e 1971), a ditadura militar brasileira o puniu com uma censura rigorosa e implacável que tentou calar sua palavra e impedir sua profecia.

O primeiro ganho que temos com a publicação desse livro é redescobrirmos que Dom Helder jamais se deixou dominar pelo medo e sempre encontrou meios de fazer ressoar sua palavra de ânimo e de encorajamento às comunidades e movimentos de base. Ao mesmo tempo, de um modo ou de outro, cada circular revela como ele ia tecendo fios de esperança e de abertura para um tempo novo. Quem tiver a paciência de ler, página por página, o que Dom Helder escrevia ao seu grupo de assessores/as, amigos e amigas, vai se defrontar com reflexões bem datadas a respeito de fatos e situações da época. Nessas circulares, Dom Helder conta como acompanhava os treinamentos de monitores do Movimento Encontro de Irmãos. Ali veremos como, a cada semana, visitava as mais diversas regiões e paróquias da diocese e acompanhava o dia a dia da vida do povo. Em uma circular, se refere às inundações do Capibaribe, em julho de 1970. Em outra, alude ao sequestro do embaixador suíço no Rio de Janeiro. Em outra, às prisões de dois padres em São Luiz. Em várias circulares, comenta a pressão que sofreu, por ter, em Paris, denunciado que, no Brasil, o governo militar praticava a tortura contra presos políticos.

No entanto, mais do que tudo isso, ao lerem essas circulares, vocês estarão penetrando no Santo dos Santos da vida de Dom Helder. Através dessas circulares, ele abre a intimidade do coração e nos revela algo do diálogo de amor que vivia com Deus. Cada uma dessas circulares nasceu, antes de tudo e principalmente, como experiência de oração, vivida como escuta íntima do Mistério, no qual o Dom estava mergulhado. Era este diálogo com Deus que o impulsionava ao amor universal. Ao curtir a noite santa da Vigília pascal de 1970, ele escrevia:

“O que seria de mim se cada madrugada, a unidade não fosse refeita (como nos dispersamos e nos fragmentamos ao longo do dia) e refeita em Cristo. Parece que (cada vigília) cansa e descansa” (Cf. 30a Circular, Recife, 27/28 03.1970, t. I, p. 100).

Ele vivia essas madrugadas de oração pessoal, fosse qual fosse o cronograma de atividades que estava vivendo. Sua meditação partia sempre dos textos litúrgicos da missa cotidiana e principalmente dos domingos. Alguns dos textos, comentados nessas circulares e a linguagem que usa ao se referir à liturgia dominical nem sempre são de fácil compreensão para o leitor desavisado. Além disso, o Dom estava tão impregnado de fé e,  de forma tão íntima, ligado ao Mistério celebrado, que não imaginava como essa linguagem podia ser estranha a quem não estivesse por dentro da cultura bíblica e litúrgica, que lhe era familiar. E todos esses textos de leituras e orações, ele os ligava à realidade, tanto local, como do mundo. Para ele, eram como se fossem notícias dos jornais cotidianos.

Cada coleção de suas cartas circulares mereceu um título que as caracteriza. Assim tivemos,  Circulares Conciliares, por terem sido escritas durante as sessões do Concílio Vaticano II, em Roma (de outubro a 08 de dezembro de 1962 e novamente nesses mesmos meses em 1963, 1964 e 1965). As Circulares Inter-conciliares, escritas do Rio de Janeiro e a partir de 1964, do Recife, nos meses em que se preparavam as sessões do Concílio. Depois tivemos as Circulares Pós-conciliares, escritas nos anos imediatamente depois do Concílio – (de 1966 a 1969). Seguindo esse critério, essas que agora temos em mão e que cobrem de janeiro de 1970 a julho de 1971, receberam o título de Circulares Ação Justiça e Paz.  De fato, ao ler essas vigílias, qualquer pessoa perceberá que, em quase todas as circulares, a preocupação mais profunda do Dom é ver espalhada pelo mundo a semente que ele plantara em 1969 de uma Ação Justiça e Paz. Queria mobilizar todas as forças vivas da sociedade para ir além do trabalho de apenas uma comissão de notáveis, em cada diocese, como Comissão Justiça e Paz. Cada vez era mais urgente uma ação coletiva e mundial que incendiasse toda humanidade com essa proposta divina. Para isso, em todos os discursos e em várias das meditações, escrevia para o que chamava de “minorias abraâmicas“, grupos pequenos e informais, mas convictos de terem a vocação de espalhar pelo mundo a justiça e a paz.

Em vários dos discursos, Dom Helder repete ou retoma as suas ideias chaves: Ninguém pode se conformar com as injustiças. O mundo pode ser transformado. Essa transformação nunca virá dos governos e estruturas de poder. Só ocorrerão se vierem dos pequenos e pobres do mundo. E acrescentava:

“Todas as religiões estão em grande dívida para com a humanidade. Por que não conseguiram, com suas mensagens, tocar a consciência humana, de modo a chegar-se a um mundo mais justo e mais humano? Grave e triste é ter que reconhecer que, entre todas as religiões, a que tem dívidas maiores para com o homem é o Cristianismo: são de origem cristã os 20% da Humanidade que retêm 80% dos recursos da terra. Que fizemos, nós, os cristãos, do Evangelho do Cristo?”  (Cf. 174a Circular, Recife, 5/6. 1. 1971, T. III, o. 21).

Ao ler as reflexões do Dom sobre os acontecimentos políticos e a realidade internacional, podemos concluir que muitas dessas análises nos podem servir mais como memória histórica. Outras, embora se refiram a fatos daquele tempo, guardam um sabor de atualidade. Podem nos ajudar a compreender melhor o que vivemos nesses dias terríveis que nos dão o que pensar. É impressionante descobrir como em um poema escrito durante uma vigília em 1971, o Dom antecipava a doutrina do papa Francisco na encíclica sobre o cuidado da casa comum:

Quem disse que a Terra é morta

quando ela palpita de vida!?…

Fosse morta e nela morreriam

as sementes de vida que lhe confiamos.

A terra não é uma coisa, um ser inerte.

Quando, um dia, nos planos divinos

nela repousarmos, aguardando o Amanhecer,

entreguemo-nos tranquilos a ela,

como quem é recebido entre braços fraternos…

((Cf. Circ. 73 – 08/ 09 – 07 – 1970, p. 284)

Seja quando se refere a acontecimentos que fazem parte do passado, seja quando reflete sobre a realidade do Nordeste, até hoje, profundamente injusta e, cada vez mais, marcada pelas desigualdades sociais, Dom Helder aprimora sempre mais um estilo oral e vivo que nos envolve. É como se, em suas páginas, pudéssemos ouvir sua própria voz, aquela voz, única e inconfundível,  musical e ondulada, voz profética que, ainda hoje, nos chama à solidariedade e à construção da Justiça e da Paz.

Ele estava convencido de que, seja como for, a bondade humana superará qualquer onda de ódio. A sensatez do coração sempre acabará triunfando sobre a barbárie. Você que ler essas circulares e aceita sua argumentação terá a certeza de que, juntos, temos a missão de continuar essa onda de esperança, mesmo se nem sempre é fácil manter viva essa chama da fé.

Não devemos nos iludir e imaginar que, por ser  profeta, o Dom se mantinha sempre tranquilo e otimista. Era inevitável que também sofresse momentos de forte crise e até de angústia. Como Jesus no horto das oliveiras, ou naquilo que alguns exegetas chamam de “crise galilaica”. Encontramos as mesmas crises e noites escuras de dúvidas e questionamentos, na solidão e na marginalidade, sofrida por diversos santos e santas da história. Lemos textos semelhantes a esse nos diários de Dom Oscar Romero, o santo bispo mártir de todas as Américas.

Ao recordar os tantos e imensos problemas com os quais Dom Helder lutou e ao ver como ele os enfrentou com confiança e, de fato, os superou, podemos recobrar a esperança de que os acontecimentos negativos nunca nos dominarão.  Nunca poderão diminuir nossa fé de que a Palavra da Vida e da Libertação será sempre a última a vencer. Por mais difícil que esteja  agora  realidade do mundo e do Brasil, aprendemos de Dom Helder a olhar a vida a partir da resistência e da esperança dos pequenos. E a partir desse ângulo que é o do Cristo, a história que vivemos hoje, como aquela que o Dom viveu é sempre grávida de salvação. Para nos dar certeza disso, em uma das vigílias, o Dom escrevia:

“Por favor: não apieguem o nome! Não o açucarem!

Não o dissorem! Que ele guarde toda a seiva

do amor generoso e forte, capaz de vencer o ódio

e superar a morte! E que haja, então,

sem delonga, a amorização do Universo!”

(Cf. Circ. 73 – 08/ 09 – 07 – 1970, p. 284)

INTRODUÇÃO AO TOMO I

Quem já conhece as cartas circulares que, desde quando morava no Rio de Janeiro, Dom Helder Camara escrevia à família mecejanense, (grupo de amigas e amigos que o assessoravam), perceberá nas cartas deste volume V algumas particularidades. Aqui vamos percorrer 80 cartas, desde a foi escrita na madrugada de 1º de fevereiro de 1970 até aquela que brotou da sua vigília na madrugada do 19 de julho do mesmo ano. Além disso, há algumas que ele chama de “extras” e que, em geral, são ocupadas por discursos que ele deveria pronunciar nas mais diferentes arenas do mundo, como universidades, câmaras municipais ou simplesmente encontros com a juventude e, sobre as quais, sempre consultava a família mecejanense.

É possível que alguém mais habituado/a às circulares do tempo do Concílio e dos anos que lhe sucederam, estranhe que, nestas circulares de 1970, os assuntos tratados se restringem mais a comentários de textos litúrgicos e à preparação de discursos. Há, sim, acenos a encontros pessoais e à relação que mantém com as pessoas. Aqui e ali, alude a alguma atividade ou programação que fez na véspera, ou fará naqueles dias. No entanto, parece que o núcleo central dessas circulares é mesmo mais constituído por discursos e reflexões do que pela partilha de experiências, encontros e diálogos que marcaram mais circulares de tempos anteriores.

Provavelmente, há vários motivos para isso. No plano social e político, a ditadura brasileira parecia mais forte do que antes. A repressão atingia Dom Helder, tanto pela censura direta que impedia os meios de comunicação até de falarem o seu nome, como pela perseguição e violência que, de vez em quando, se abatia duramente sobre pessoas ligadas a ele. O Dom tinha plena consciência de que, em maio de 1969, ao torturarem barbaramente e assassinarem o padre Antônio Henrique, era a a pessoa dele, o arcebispo, que os agentes da Ditadura queriam atingir. Em novembro de 1969, em Porto Alegre, o padre Marcelo Carvalheira, amigo e e auxiliar direto de Dom Helder e diretor do Instituto de Teologia do Recife (ITER) foi preso como suspeito de atividades subversivas e mantido incomunicável por meses. Foi no mesmo momento em que os quatro frades dominicanos, frei Betto, Fernando, Ivo e Tito, foram presos em São Paulo e três deles, violentamente torturados. Ao mesmo tempo, já havia meses, o Estado de São Paulo publicava artigos de Lenildo Tabosa Pessoa informando que o Vaticano (portanto, o papa) desautorizava Dom Helder e era contrário a suas posições (Cf. O Estado de São Paulo, 27/ 07/ 1969). A notícia, em si, era falsa. No entanto, era extremamente útil aos opositores de Dom Helder, enquanto lhes dava legitimidade para agirem. Além disso, embora o Vaticano jamais se comunicaria daquele modo, Dom Helder sentia que, de fato, em suas relações com o papa e com a Cúria Romana, alguma coisa tinha mudado e ele não conseguia mais ser compreendido. Nem por isso, deixava de afirmar: “Se a Igreja se decidisse a exercer o serviço de pôr sua força moral à disposição de uma integração para além de egoísmos nacionais ou de grupos!… Somos filhos da esperança: como deixar de esperar!?…”  (Circular 60 de 20/21. 06. 1970, p. 241)

Quase diariamente, jornais como O Estado de São Paulo e outros traziam ataques a Dom Helder e o denunciavam como agitador social. Em um de seus discursos à juventude, querendo propor que os protestos da juventude não tomassem formas violentas, ele afirmou: façam como os beattles, protestem sem violência (com canções). A imprensa brasileira distorceu a afirmação para afirmar que o arcebispo tinha aconselhado os jovens a fazerem como os beattles: usar drogas (Ver O Estado de Minas, 20 de maio 1970).

Quando, em junho de 1970, no Rio de Janeiro, um grupo clandestino sequestra o embaixador alemão Von Holleben, Francisco Falcão, dono de engenho de cana em Pernambuco, afirma publicamente que o jornalista Marco Aurélio Alcântara citou Dom Helder Camara, como possível envolvido no sequestro (Cf. Diário de Pernambuco, 17 de junho de 1970). O pior de tudo isso é que Dom Helder não podia se defender e ninguém podia falar em seu nome.

Como tinha decidido nunca responder provocações, mesmo nas circulares, quase nunca se refere à pressão que sofria. Só às vezes, alusões leves e passageiras. No entanto, era quase inevitável que as contínuas restrições a suas atividades no Brasil o levassem a se abrir mais a outros países. E daí, vinham acusações de que ele descuidava da arquidiocese e da pastoral das bases. Eram injustas. Ele sempre dava prioridade aos pobres e à sua Igreja particular. Em 1969 criou o Movimento Encontro de Irmãos e no ano 1970, ainda o estava consolidando. Ele o acompanhava pessoalmente, a cada passo e a cada momento, tanto na formação dos monitores e, principalmente, através da palavra diária que dava no programa de rádio que mantinha a reflexão dos grupos.

Em 1970, as relações com as pessoas da família mecejanense que, nos anos imediatamente posteriores ao Concílio, eram frequentes, pelo próprio caminhar do tempo, se tornam mais esparsas. E as pessoas já começavam a sentir o peso da idade, inclusive o próprio Dom que, em 1969, tinha completado 60 anos.  

Por tudo isso, as circulares, escritas neste tempo, refletem um conteúdo mais reflexivo. Nas primeiras, o Dom precisa explicitar e aclarar até para si mesmo como compreende a “violência dos pacíficos”, ou não-violência ativa. Em cada circular, ele vai partilhando os capítulos que pensa para o livro “A espiral da violência” que foi publicado na Europa. Em outras circulares, antecipa discursos que fará, um em Bruxelas, outro em Berlim, outro em Paris e assim por diante. O próprio fato de alguém como o Dom, sempre tão claro em suas propostas, precisar refazer cada discurso duas ou três vezes, revela como ele se sentia vigiado, pressionado. Qualquer palavra menos pensada podia lhe custar muito caro.

Neste contexto, ainda se torna mais impressionante a energia de esperança e otimismo que ele mantém e revela em cada circular. Em uma das circulares, com toda sinceridade, se expressa: “Não me arrependo de lhes ter revelado um pouco da crise da qual, com a ajuda divina, estou saindo. Circular não deve ser só para o lado heroico e positivo. É bom que elas me revelem como sou, de corpo e alma. Gente. Capaz de dúvidas, vacilações e crises. Capaz e como! De fraqueza. Cheio da imensa boa vontade de sempre. (71ª circular. 06/ 07. 07 1970, p. 278).

Ele se detém menos sobre si mesmo e se coloca por inteiro na ânsia de alargar a Ação Justiça e Paz e de mobilizar as minorias abraâmicas, assim como de, através desse trabalho cotidiano e incessante,  testemunhar que, nele, o Espírito Divino é sempre fonte de alegria e esperança. Em junho de 1970, uma época das mais pesadas em termos de pressão de todos os lados, ele afirma com convicção: “Qualquer coisa está para nascer! E só acredito em partos dolorosos. Instantes depois, é a alegria porque um novo ser saltou para dentro da vida!”(61ª Circular – 22/ 23. 06. 1970, p. 244)

Não quero mais roubar de você que começa a ler este livro a alegria do contato direto com os textos. Deixo então que você saboreie esse alimento suculento para ter força de manter acesa a lamparina da esperança para os dias de hoje e os tempos que virão. Escute como para si mesmo/a e para os dias que vivemos, o apelo sempre atual de Dom Helder:

Não apagues a mecha que fumega

Mesmo que a chama não mais se alteie,

mesmo que mais haja fumaça

do que fogo, do que luz,
quem te assegura
que a um sopro
– inesperado e misterioso –

 não volte a flama a crepitar!?…

Recife, 7.7.1970 (72ª Circular, 07. 07. 1970, p. 282- 283).

Que o Espírito o/a guie por cada passo desta leitura.

O irmão Marcelo Barros

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