Causos do Dom: Sonhos de um profeta

Causos do Dom: Sonhos de um profeta

Prof. Martinho Condini

Quais seriam os sonhos de um profeta? Numa de suas vigílias, na madrugada do dia 31 de outubro de 1981, Dom Helder Camara escreveu para o seu amigo e confidente Jerônimo Podestá, Bispo casado argentino, com quem mantinha intensa correspondência, para descrever os seus mais secretos sonhos. Suas madrugadas longas e fecundas eram povoadas de meditação, leituras, oração, redação de cartas, textos e poemas. O espírito fervilhou de ousadia, sonhando como desejava ver o mundo e a Igreja no novo milênio que estava despontando. 

Ao “querido irmão Jerônimo”, Dom Helder, então com 72 anos, próximo de sua aposentadoria como arcebispo de Olinda e Recife, revela seus planos para o futuro. Compará-lo ao Dom Quixote está longe de ser uma nota depreciativa, porque ele mesmo gostava de acrescentar: “Ai do mundo se não fosse a utopia, ai do mundo se não fossem os sonhadores”.

Como um ‘Quixote” moderno, anuncia na carta os desafios que gostaria de enfrentar. Apesar dos “perigos evidentes de suicídio universal”, vê grandes sinais de esperança, tanto nos países do Terceiro Mundo, como nas potências industrializadas e ricas e, por isso mesmo, pretende dedicar tempo aos seus três sonhos principais.

O primeiro é o da “Autêntica integração latino-americana sem imperialismo de fora nem imperialismo de dentro”. Para isso a igreja precisaria animar, sem partir de modo algum par uma nova Cristandade ou governos teocráticos, a marcha para um continente irmão, ponto de partida para um mundo irmão. “Será necessário retomar o Celam, sem ambições personalistas nem golpe baixo” para que a Igreja de Cristo na América Latina esteja sempre mais a serviço da nossa gente sofrida. Temos que estar alertas para a hora de Deus”, adverte.

Sonhava também com a convocação, no ano 2000, do Segundo Concílio de Jerusalém. Para entender a força deste sonho, é preciso saber o que significou o Primeiro Concílio de Jerusalém, descrito na Bíblia e realizado no começo da Igreja. Por volta do ano 48, apresenta-se em Antioquia o problema relativo à oportunidade da circuncisão para os não judeus, quando cristãos provenientes da Judéia reclamam a “liberdade adquirida em Cristo Jesus”, que Paulo e Barnabé também invocam para não impor esse ritmo aos cristãos vindos do paganismo.

A comunidade decide então interpelar os Apóstolos e os Anciãos de Jerusalém e lhes enviam Paulo e Barnabé, com seu companheiro grego Tito, acompanhados de uma delegação. Apóstolos e os Anciãos de Jerusalém aceitam Tito, “não circuncidado”, reconhecendo, assim, a validade do anúncio de Paulo a respeito da liberdade da graça. Neste Concílio, os apóstolos perceberam a universalidade do Evangelho de Cristo, que precisa romper os limites estreitos do judaísmo e de quaisquer outras amarras culturais ou religiosas, para ser levada para a humanidade.

Um segundo “concílio de Jerusalém” implicaria, na visão de Dom Helder, a predisposição da  Igreja em rever a caminhada. Ele sonhava com “a transformação da Cúria Romana num serviço à colegialidade episcopal” e com uma “ajuda efetiva ao Papa para viver a sua missão de Pedro e seu primado exclusivamente em termos evangélicos de serviço e de amor”. Defendeu também a libertação da Igreja da “engrenagem do dinheiro e das tentações de prestígio”. Só assim poderá realizar “o ecumenismo q que é plenamente chamada”.

O terceiro sonho era do “diálogo autêntico com os mundos dos mundos”. Ele escreveu: “Todos nós sabemos que a galáxia a que pertencemos está longe de ser das maiores. Nosso Sol, que nos parecia imenso, é de sexta ou sétima ordem. Nossa Terra é poeira na cavalgada dos astros. Como cristãos, jamais esquecemos que o filho de Deus se encarnou e nossa Terra, pequena e humilde”.

E prosseguiu: “Não podemos mais insistir em pensar que o Criador, infinitamente sábio e poderoso, criou bilhões de estrelas, milhões de vezes maiores que a Terra, só par ficarem a enormes distâncias cintilando para alegria do olhar humano…Será orgulho absurdo pretender que a vida, e, sobretudo vida inteligente e livre, somente exista na Terra. Deve haver, nos mundo dos mundos, vida no nível da nossa, abaixo e acima do nível da nossa”.

O problema para criatura humana, segundo ele, seria como atingir mundo tão distantes. “Mas que dúvida que o homem vá aprender a viajar utilizando as forças da natureza e atingir a velocidade da luz? Einstein nos advertiu que, se tal acontecesse, o corpo do homem se volatizaria, mas por que duvidar que o homem, cuja inteligência participa da inteligência divina, descobrirá meios de proteger-se contra a volatilização do corpo? ”.

Dom Helder sonhava que tudo isso poderia vir a acontecer antes do ano 2000. Então Recomendou ao amigo Podestá: “precisaríamos estar alertas para ajudar nossos irmãos, que ficarão tontos…Ainda hoje, há quem duvide da descida do homem na Lua. Há que diga que, se é verdade ( a chegada à Lua), é sinal de fim do mundo, quando ainda estamos no primeiro dia da criação”.

Ao final da carta reforça seu interesse pelos três sonhos e avisa que, na hora oportuna, poderá indicar um ou dois brasileiros especialmente qualificados para integrar a equipe latino-americana, que se ponha, de cheio, a serviço do primeiro sonho. Quanto ao terceiro ingorma que pretende entrosar-se sempre mais, “com especialistas em Astronomia, em Astronáutica, em Astrofísica, em Astroquímica, em Astropolítica, para ajudar a trazer a Igreja de Cristo em dia com a marcha do sonho número três”.

Mas o sonho para o qual se sentia particularmente chamado é o sonho número dois: “Não me preocupa saber que é mais do que provável que já assistirei o Jerusalém II da Casa do Pai. Ficarei ajudando de lá”.

E termina a carta com um recado ao amigo: “Caro Jerônimo, como sempre lhe falei de coração aberto, você sabe que esta carta não é apenas para você, mas também para Clélia, que tem sido instrumento providencial junto a você.  Que Deus continue a iluminá-los e encorajá-los! Talvez os meus sonhos pareçam loucos a vocês. Talvez vocês me quisessem ver com os pés fincados no humilde dia a dia.

“Quando se sonha sozinho

é apenas sonho

Quando sonhamos juntos

é o começo de uma realidade.

Fiquemos sempre unidos em Cristo”.

FILHO, Félix. Além das Ideias: histórias de vida de Dom Helder Camara. 1ª reimpressão. Recife. Cepe. 2016. p.108-109-110

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