Memória Viva: A Atualidade das Proposições de Dom Helder Acerca das “Minorias Abraâmicas” (VI)
Geraldo Frencken
3. Pular no escuro
É fácil, relativamente fácil, escutar o chamado de Deus, através dos acontecimentos do nosso tempo e do nosso meio. Difícil é não parar em atitudes emotivas e de compaixão e de pezar. Dificílimo é arrancar-nos do nosso comodismo; quebrar estruturas interiores (as mais duras e penosas de quebrar); deixar-nos revolver pela graça; decidir-nos a mudar de vida; a converter-nos.
Quanto mais se tem a largar; quanto maior e mais cheia de consequências é a opção de levar a sério o chamado de Deus, maiores e mais sutis são os esquemas de defesa interior. “Afinal, não é possível levar longe demais o que pode ser impressão do momento”. O que levou séculos se consolidando não pode e não deve mudar em horas, e nem mesmo em dias, meses, e anos”…
Há dentro das Religiões, pessoas sinceras, piedosas, insuspeitas, que são as primeiras – por palavras e atos – a aconselhar moderação, equilíbrio. “Mesmo porque de qualquer precipitação, exagero, e radicalização só terão a lucrar os agitadores e, consequentemente, os comunistas”.
É preciso ver claro e formar, firmemente, a consciência, para não nos deixarmos abalar por tentações internas ou externas. Não nos deixemos impressionar pela alegação de necessidade de manter a ordem social. Olhemo-la de perto e por dentro não é exagero afirmar que não se trata de ordem, mas de desordem estratificada.
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Firmemo-nos na opção de ultrapassar o mero assistencialismo e de clamar por
justiça como caminho para a paz.
Este é um dos modernos divisores de água. Quem se limita a pedir, aos Poderosos, ajuda para dar aos Pobres; quem chega mesmo a ajudar os Pobres em um começo de promoção humana, mas sem “imprudência” e a audácia de falar em direitos e de ensinar a exigir justiça, é admirável e santo. Quem opta pela justiça e pela
mudança das estruturas que escravizam, no Mundo de hoje, milhões de filhos de Deus, prepare-se para ver o próprio pensamento distorcido; para ser vítimas de difamações e de calúnias para perder o prestígio junto ao Governos e Poderosos, e quem sabe, ser preso, torturado ou até eliminado … Mas como esquecer que isto é viver a 8.ª bemaventurança:
“Felizes sereis quando vos ultrajarem, perseguirem e, mentindo, fizerem todo mal contra vós, por causa de Mim. Alegrai-vos e exultai, porque grande será vossa recompensa no céu. Foi assim que perseguiram aos profetas, que vos precederam…”.
Seria razoável pensar se adianta começar a chamar, de modo pacífico, mas decidido e firme, por justiça, enquanto a própria vida ou instituições a que pertence estejam comprometidos com a engrenagem das injustiças e da opressão. Na medida em que houver sinceridade em reconhecer a contradição provisória, na medida em que houver desejo sincero de encontrar, quanto antes – para si e para as instituições a
que esteja preso – os caminhos da libertação, é ótimo ir-se comprometendo com a verdade e com a justiça …
(Abertura da AJP para o plano mundial. Recife 21-22.1.1971. 186.º Circular.
Em: DOM HELDER CAMARA, Circulares Ação Justiça e Paz. Volume V – Tomo III, p.p. 63-64. (Editora CEPE, Pernambuco, 2022)