Memória em Palavras: A Atualidade das Proposições de Dom Helder acerca das “Minorias Abraamicas” (I)
Observações preliminares
Apresento algumas considerações
iniciais acerca das “Minorias Abraâmicas”,
tiradas do livro “Helder Camara, quando a
vida se faz Dom”, de Eduardo Hoornaert.
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“Em 1971, aos 62 anos, Helder desloca – mais uma vez – o foco de seu interesse e passa a falar em minorias abraâmicas, uma expressão nem tão fácil de ser compreendida e que aqui comento.
Não é o primeiro deslocamento, mas talvez o mais rico em sugestões para os dias de
hoje.
Geraldo Frencken
Quem lê as Cartas Circulares de Helder Camara relativos aos anos 1970-1975
percebe que ele, com clareza crescente, se distancia do tradicional princípio consenso e vai aderindo aos poucos ao princípio minoritário. Ele sabe por experiência que o princípio consenso descamba facilmente para o autoritarismo e não raramente exime as pessoas de um sentimento de responsabilidade diante de decisões tomadas por uma maioria: o que for decidido por todos, afinal, não é decidido por ninguém. A pessoa se esquiva dizendo que está em consonância com a maioria e desse modo se exime de tomar responsabilidades pessoais. Ela passa a se submeter a uma lógica externa, agir como mera engrenagem num sistema considerado válido, não se interrogar sobre o
impacto concreto de uma decisão elaborada em consenso. Desse modo se perpetuam injustiças sistêmicas. O princípio consenso passa a funcionar, então, como um mecanismo puramente técnico, burocrático, autopropelido.
Helder, ao sentir – de um lado – o perigo representado pelo princípio consenso e – de outro – ao perceber que fica difícil enfrentar a questão abertamente, propõe uma mudança de rumo dentro do melhor estilo eclesiástico: mudar sem dar a impressão. Camuflar a mudança por meio de um vocabulário diplomático amplamente usado – por exemplo – no Concílio Vaticano II, como “refontização”, “aggiornamento”, “adaptação”, “diálogo com o mundo”, etc.
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Helder não foge ao padrão. Sem fazer alarde, ele lança a ideia de “minorias abraâmicas”, que constitui uma real mudança de rumo. No início de 1971, ele prepara cuidadosamente o terreno. Novas palavras de ordem encabeçam suas Cartas Circulares. Em 1971: Primeira fase. Abertura da Ação Justiça e Paz para o plano mundial (Vejam os primeiros sete textos publicados, desde o dia 04 de janeiro).
Em 1972: Segunda fase. Apelo às Minorias Abraâmicas. A partir de 1974: Terceira fase. Articulação das Minorias Abraâmicas. A partir daí aparecem, num movimento crescente, expressões como “família abraâmica”, “pastores abraâmicas”, “esperança abraâmica”, etc.
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O “princípio Abraão” é o oposto do “princípio consenso”. Mas, será que é isso que aparece no texto bíblico? É verdade, Helder faz exegese sem si dizer exegeta, ele pratica intuitivamente uma leitura original do texto bíblico, em vistas a situações concretas vivenciadas por ele e por sua gente.
Suspeitando que algo vai “por trás das palavras bíblicas”, ele descobre um Abraão antes da letra bíblica escrita, um Abraão próximo de antigas tradições orais em Canaã, ainda não enquadrado em leituras feitas por letrados do restaurado Templo de Jerusalém, no século VI a. C., após o exílio babilônico, sob o impulso do sacerdote Esdras; letrados que leem a história de Abraão numa perspectiva nacionalista e dinástica, dentro de um determinado contexto político, social, cultural.
Helder suspeita – sempre sem pretender ser exegeta – que a primordial tradição em torno de Abraão não seja nem nacionalista, nem dinástica, nem, a rigor, religiosa. Ele descobre um Abraão escondido por trás das letras, atrás dos letrados do Templo de Jerusalém. ….. Como Helder chega a essa percepção de um Abraão avant la
lettre (antes da letra)? Provavelmente por intuir que as letras do livro Gênesis não lhe servem, já que ele está interessado em propor um princípio de ação que se contraponha ao princípio consensual predominante e direcione vidas humanas a horizontes de minoridade eficaz. Para ele, Abraão significa minoria. Seu Abraão não é um Moisés a libertar seu povo do poderia egípcio e a dirigir os hebreus durante quarenta anos pelo deserto, em marcha à terra prometida. Uma liderança a ressoar nos quatro dos cinco primeiros livros do Pentateuco. Nas letras, Abraão ocupa um lugar bem mais
modesto: ganha apenas treze capítulos dos cinquenta que compõem o livro Gênesis. Eis o Abraão que interessa a Helder Camara. Ele sugere minoria, “resto de Israel”, resistência, representa homens e mulheres que não se preocupam a difundir uma religião ou alguma sabedoria superior, mas que constituem o prenúncio de uma nova humanidade, baseado no amor e na solidariedade. Eis o que Helder intui ao se referir a Abraão.
Repito: o Abraão de Helder Camara não é o Abraão patriarca, nacionalista, pai de Israel e
fundador das três religiões monoteístas. É o homem que espera contra toda esperança, vaga pelo deserto à procura de terras boas para sua família, seus empregados e dependentes, enfrenta caminhos sem fim. Um camponês caldeu que passa a vida “de tenda em tenda”, animado por uma esperança que nunca morre. O Abraão de Helder Camara vaga pelo imenso Brasil a procura de bem-estar para sua gente.”²
¹ HOORNAERT, EDUARDO. Helder Camara, quando a vida se faz Dom. São Paulo, Editora Paulus, 2021.
Coleção TEOLOGIA E VIDA, pp.. 301. 304-305. 307.311-313. Recomendo muito a leitura desta obra de Eduardo Hoornaert.
2 No seu livro, Eduardo Hoornaert dedica doze páginas (pp. 311-322) à explicitação do “princípio Abraão”, fazendo uma leitura exegética, histórica.