Memória em Palavras : Peregrinos De Um Mundo Novo – Reflexões Vocacionais a Partir de Dom Helder Camara

Memória em Palavras : Peregrinos De Um Mundo Novo – Reflexões Vocacionais a Partir de Dom Helder Camara

Ivanir Antonio Rampon*

Eberson Fontana**

Lenice Rebelato***

Resumo: O presente artigo discorre sobre a vocação de Dom Helder

Camara, importante bispo brasileiro, lembrado pela sua opção pelos

pobres. O itinerário seguido perpassa o despertar vocacional, os anos de

seminário, o amadurecimento e a compreensão de vocação segundo a

espiritualidade helderiana. Sob a inspiração da obra O deserto é fértil,

desenvolve sua tese central ao aprofundar o conceito de minorias

abraâmicas, de onde é possível entrever intuições para os vocacionados do tempo presente. Dom Helder apresenta um caminho para a doação total da vida através da superação do egoísmo, o enfrentamento das cruzes e a identificação das grandes causas pelas quais vale a pena dedicar a vida.

Palavras-chave: Dom Helder Camara. Vocação. Chamado. Opção pelos

Pobres. Minorias abraâmicas.

Introdução

Quem foi Dom Helder Camara? Uma pessoa simples, mas ao mesmo tempo especial, que deixou marcas com seu jeito único de ser, com sua visão ampla, profética, abrindo portas para o aggiornamento da Igreja. Sua vida foi notadamente carismática, um amante de Jesus Cristo, da vida e dos pobres. Como “bispo das favelas” sua vocação foi vivida intensamente, merecendo reconhecimento internacional por defender os Direitos Humanos. Com seu espírito de simplicidade e de sorriso fácil, cativava desde pessoas humildes e simples até nomes renomados.

Falar sobre um vocacionado não se restringe a citar os grandes feitos dignos de uma boa biogra?a jornalística: é, sobretudo, apontar para a profundidade de uma vida repleta de sentido e bem vivida. Por isso, a profundidade de sua vida e a forma como Helder respondeu ao chamado de Deus, o processo de cultivo e crescimento dentro do seminário, a formação permanente e as conversões enquanto padre e bispo e a própria atenção à dimensão vocacional permitem amplas contribuições que lançam luzes ao tempo presente.

O despertar vocacional, a resposta ao chamado divino, é o primeiro passo de uma longa jornada. Por isso, cabe olhar com atenção para o jovem Helder, o que será realizado na sequência…

1 O DESPERTA R VOCACIO NA L

Dom Helder Pessoa Camara nasceu em Fortaleza/CE no dia 7 de fevereiro de 1909 e faleceu em 27 de agosto de 1999. Filho de João Eduardo Torres Camara Filho e Adelaide Pessoa Camara, tinha 13 irmãos. Helder era o décimo primeiro ?lho. Na sua ampla biogra?a, consta a defesa dos direitos humanos e diversos prêmios, entre eles, o Prêmio Martin Luther King, nos Estados Unidos, quatro indicações ao Nobel da Paz e o Prêmio Popular da Paz, na Noruega.

A infância de Helder Camara foi marcada pela religiosidade, no Nordeste das procissões, da devoção aos santos, à Virgem Maria, do profundo respeito pela pessoa do padre e inúmeras outras expressões de fé. Na família, enquanto o pai João Eduardo era adepto dos ideais maçônicos e, ao mesmo tempo, do catolicismo, a mãe expressava sua devoção através das imagens e uma participação mais efetiva na Igreja. Na vida dela prevalecia uma fé consciente, própria de uma professora com ideais pedagógicos e antropológicos à frente de seu tempo.

Alguns episódios da adolescência de Helder ajudam a aprofundar a imagem de Deus e da pessoa humana predominante no seio familiar. Segundo Ivanir Rampon, a mãe não expressava uma leitura diabólica da sexualidade, algo presente na religiosidade popular do século XX: “ensinava que todo corpo humano fora criado por Deus – pois alguns diziam que certas partes foram criadas pelo diabo. Também dizia que, se existe o mal no mundo, é sobretudo, por causa da fragilidade humana”1. Esta visão sobre Deus repercutia na relação com os ?lhos, com uma presença de ternura e de liberdade, própria de quem tem uma relação próxima com o Deus de Jesus Cristo. Uma relação assim é fundamental para o ambiente de discernimento vocacional. Este ambiente explica o motivo pelo qual Helder gostava de brincar de rezar missas e de acompanhar celebrações, aproximando-se dos padres e de Deus.

Se é possível identi?car na presença da mãe Adelaide um acompanhamento progressivo no amadurecimento vocacional de seu ?lho, uma frase ouvida do seu pai, diante da manifestação do desejo de ser padre, foi marcante na vida de Helder Camara. Ao perceber que o ?lho perseverava na convicção em ser padre, seu pai expressou o que signi?cava ser padre para ele: “Você sabia que para uma pessoa ser padre, ela não pode ser egoísta, não pode pensar só em si mesma? Ser padre e ser egoísta é impossível, eu sei, são duas coisas que não combinam”2. Diante da provocação inesperada, a resposta foi convicta: “Pai, é um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”3. A clareza da resposta lhe rendeu a bênção de seu pai. Ao mesmo tempo, pode ser vista como uma resposta ao chamado de Deus e ao clamor do seu povo. Ao longo da vida, essa resposta se tornou concreta naquele que foi um dos mais eloquentes porta-voz do Deus – amor no século XX.

Outro elemento signi?cativo para um despertar vocacional foi a relação com a realidade que o cercava. A família tinha boa inserção social e o jovem Helder tomou o caminho da vida presbiteral consciente dos desa?os que se apresentavam. Merece destaque sua participação na Conferência Vicentina e na política. A motivação fundante da vocação e suas raízes são signi?cativas para a caminhada vocacional. Neste contexto, o jovem discerniu a vocação e expressou o desejo de ser padre.

No período do despertar vocacional do menino Helder também aparece a ?gura de José. Este era o nome de um dos seus irmãos falecidos e, por conta disso, quase foi o nome dado a Helder. O nome, contudo, não foi esquecido e sua mãe o utilizava para revelar seu apoio e presença em momentos extremos de di?culdade ou de grande alegria diante do ?lho Helder. Ainda jovem, ele nomeou seu anjo da guarda de José e com ele dialogou por toda a vida com grande devoção. No despertar vocacional, José foi, de certo modo, para Helder o que o anjo Gabriel representou para Maria. Sua presença constante em momentos de crise ajudou a superar o medo. Mais tarde, suas vigílias são marcadas pelas “meditações do Pe. José”, codinome utilizado em momentos fortes, que expressam principalmente a dimensão mística helderiana, onde prevalece a “vitória da Graça”4.

1.1 Anos no Seminário

Após o despertar vocacional, aos 14 anos, o jovem entrou no Seminário São José da Prainha, em Fortaleza/CE. A bagagem de estudos existente em sua família fez com que no Seminário se destacasse nos estudos, mas também se destacava a paixão vocacional. Evidenciava-se sua profundidade espiritual na forma de viver e na beleza expressa na vida, na arte, na poesia.

Diversos episódios do tempo de seminário chamam atenção. Seu hábito de escrever meditações desconcertou seu reitor, que, ao confundi-las com poemas, temia pela perda da vocação. O então seminarista, contudo, mesmo seguindo o pedido do reitor de deixar de lado a “poesia”, manifestava a consciência de que a criatividade e a imaginação são dons divinos e, portanto, aproximam as pessoas de Deus.

O encontro com o Pe. Cícero, quando o seminarista foi enviado à sua paróquia para obter assinaturas do jornal da diocese, tem contornos especiais. Apesar de ser difamado naquele meio de comunicação, o Pe. Cícero deu uma lição de humildade, revelando que “[…] no coração de um cristão, e sobretudo de um padre, não cabe uma gota de ódio”5. A proximidade do padre interiorano com o povo simples não passou despercebida pelo jovem seminarista. O testemunho ?cou marcado em sua memória e viria a ser uma das tônicas de sua própria vida.

Nos seus 22 anos de idade, Helder foi ordenado presbítero. Isto foi possível com a autorização especial da Santa Sé, pois não tinha a idade mínima de 24 anos. Foi ordenado bispo, aos 43 anos de idade, no dia 20 de abril de 1952.

Prestes a realizar seu sonho de infância e juventude, o então seminarista Helder passou por uma crise vocacional, pois surgiu a ideia de contribuir para a Igreja como um leigo, à semelhança de Jackson de Figueredo e Alceu Amoroso Lima, importantes intelectuais da época. O Papa Francisco, em fala sobre o Pacto Educativo Global, re?ete sobre o aspecto positivo e necessário das crises:

Nós devemos aprender e ajudar para que os outros aprendam a viver as crises, porque as crises são uma oportunidade para crescer. As crises são gerenciadas e devemos evitar que elas se transformem em con?ito. As crises tiram você da zona de conforto, te fazem crescer; o con?ito te fecha, é uma alternativa; uma alternativa sem solução, sem resolução. Educar para as crises. Isso é muito importante. Deste modo ela pode se tornar um kairós – as crises –, são um momento oportuno que nos provoca a trilhar novos caminhos.

A crise do seminarista Helder foi superada com orações, conversas com sua mãe e o Pe. Tobias, reitor do seminário. A partir disso, ele decidiu-se pelo caminho sacerdotal. Dali surgiu a clareza da necessidade de transformar a própria vida em oração, aprofundando a espiritualidade e vivência presbiteral. Desta decisão nasceram as vigílias.

O seguimento a Jesus Cristo exige a conversão da mente, do coração e vai se expressando nas ações. Olhando para a vida de Dom Helder, percebe-se o desenvolvimento da atitude de humildade e obediência que o levou a um processo de conversão. Aos poucos foi vivendo mais a opção pelos pobres, em sintonia com o Evangelho, aproximando-se de Deus e respondendo aos apelos da realidade.

2  O  Deus que chama  , capacita   e envia   em missão

Falar sobre a compreensão de vocação de Dom Helder e sobre o seu processo vocacional pessoal leva ao aprofundamento da mística que guiou este percurso. Ele praticou seu lema episcopal, “Em tuas mãos”, através de espiritualidade ?lial que foi progredindo ao longo da vida e gerando opções concretas, de acordo vontade de Deus. Ele expressou, através de seus escritos e do testemunho de vida, “conhecimento de Deus” (Os 6,6), de seu rosto: Deus lhe esteve presente desde o ventre materno, no núcleo familiar, até as décadas de difamação e silêncio. Muitas vezes, imaginava e sonhava, com o face a face no céu…

2 .1 O Deus presente nos mocambos, nas crianças abandonadas e nos famintos

O amor e opção pelos pobres e a sensibilidade para com as injustiças sociais são critérios fundamentais para ser discípulo de Jesus, e mais ainda para a descoberta de uma vocação especí?ca. A vida dos pobres está no cerne da missão assumida por Jesus (cf. Lc 4,18). O Papa Francisco a?rma que a proximidade com as periferias e com a pessoa do pobre são irrenunciáveis para ser cristão. No âmbito vocacional, “O empenho social e o contato direto com os pobres continuam a ser uma oportunidade fundamental para descobrir ou aprofundar a fé e para discernir a própria vocação” (CV 170).

Helder aprendeu desde cedo o valor supremo da vida e da dignidade humana. Ainda assim, a clareza da opção pelos pobres e o enfrentamento das injustiças sociais se deu com

o amadurecimento progressivo de sua fé. A vocação não aparece como um dado pronto e preestabelecido e precisa ser cultivada e amadurecida com a ação da Graça de Deus e um olhar sensível para com a realidade do povo. É possível lançar estes dois olhares sobre o amadurecimento da opção vocacional de Helder, em relação a um projeto que contempla a transformação social.

Um olhar para a ação de Deus e as opções decorrentes em Dom Helder contempla um longo caminho. Em sua maturidade espiritual era conhecido com títulos como o de “bispo das favelas”. Sua atividade intensa junto aos mais pobres, em várias frentes, pode esconder de um olhar super?cial, focado em suas obras, que o ponto de partida foi sua relação mística com Deus. Seu “pecado de juventude”7, foi a militância junto ao integralismo, movido por um desejo de defender a instituição e os valores tradicionais. Mais tarde, com uma capacidade invejável de organização e liderança, dedicou forças em grandes eventos, como o Congresso Eucarístico Internacional de 1955, vendo-o como uma oportunidade de dar projeção para a Igreja. Após o grande sucesso do evento, foi interpelado pelo cardeal Gerlier: “Por que, querido irmão dom Hélder, não coloca todo este seu talento de organizador que o Senhor lhe deu a serviço dos pobres?”8 A resposta a esta provocação foi rápida, mas foi se consolidando e amadurecendo nas vigílias, na oração e no aprofundamento. Este foi o ponto de in?exão de sua vida. O processo de con?guração a Jesus Cristo, Bom Pastor, foi despertando a consciência de que, em meio à realidade sub- humana dos pobres da época, projetos estavam em jogo. Optar pelo projeto de Jesus gera uma fé de olhos abertos: “ouço falar, sem tremer, em Bom pastor. Ele existe. Moramos juntos. Vivemos juntos. Meu trabalho é levá-lo para o meio dos homens”9.

O segundo olhar que contribuiu para o amadurecimento e cultivo vocacional foi a proximidade com a realidade concreta do povo. Não foi um passo separado da fé, mas uma opção amadurecida concomitantemente. No período em que esteve no Rio de Janeiro, e depois de forma mais intensa com o seu povo de Olinda e Recife, destaca-se uma proximidade de quem conhece os pobres pelo nome. A predisposição em estar com os últimos já está presente no seu discurso de tomada de posse em sua diocese: “no Nordeste, Cristo se chama Zé, Antônio, Severino…”10. O Palácio de Manguinhos e, mais tarde, a Igreja das Fronteiras se converteram na casa dos pobres. Além de ir diretamente às periferias, os pobres vinham até ele: “Há sempre mais de 200 pessoas, à tarde, desejosas de falar com o Dom”11.

Esta postura de Dom Helder, buscando a Deus e indo na direção dos irmãos necessitados, a exemplo do Bom Pastor, se consolida como um programa de vida e de cultivo da vocação nos tempos atuais através do ministério do Papa Francisco. Este foi um dos seus primeiros pedidos ao assumir o ponti?cado: “Como eu gostaria de ter uma Igreja pobre para os pobres”12. A opção helderiana pelos pobres cativava pessoas como padre Henrique, posteriormente martirizado, em vista da sua opção pelos pobres e como forma de atingir e enfraquecer o ímpeto profético de Dom Helder.

A prática de Dom Helder junto aos excluídos foi muito intensa. Sua proximidade com os habitantes dos mocambos revela a atitude de alguém que tocou na carne dos pobres: mulheres excluídas, desempregados, crianças desnutridas… Suas posturas e iniciativas geraram um verdadeiro “arrastão profético”, engajando muitas pessoas na mesma luta. A convergência de pessoas nesta opção espiritual foi decisiva para a Igreja brasileira e latino-americana, especialmente em Medellín e Puebla. Por tudo isso, assim como acontecia entre os primeiros cristãos, uma vocação vivida com intensidade e com o horizonte do Evangelho se torna a melhor animação vocacional!

.2 Com panheiro de vigília, do silêncio, das grandes decisões e que gosta de brincar

A prática das vigílias foi uma opção ?rmada por Helder pouco antes da sua ordenação presbiteral para que não fosse “engolido pelo mundo”, evitando um ativismo no qual ele poderia se perder nas grandes causas e projetos e deixar de lado o cultivo espiritual. Este espaço de estudo, oração, contemplação e planejamento, em meio às madrugadas, se tornou decisivo para a sua espiritualidade.

A vigília helderiana é única e original. Embora possa ser comparada com a prática de oração de outros grandes místicos cristãos, sua forma de rezar e de preparar-se para os próximos passos de sua missão ganhou traços próprios. Uma dinâmica de oração e de discernimento faz toda a diferença no cultivo vocacional. Neste aspecto, o ritmo orante de Dom Helder é marcado pela regularidade. As horas de vigília, a começar pelas duas da manhã, revelam que a oração não era um peso para ele, mas “uma conversa de camaradas que não deve ter formalismos nem cerimônias um com o outro”13. A expressão faz lembrar da oração de Jesus, que dialogava por longos períodos, ainda de madrugada, com o Abba-Pai para discernir sua vontade e orientar a vivência do seu projeto de vida. O Papa Francisco aponta para uma relação de liberdade com Deus como espaço fecundo para o discernimento e cultivo vocacional:

Na sua Palavra, encontramos muitas expressões do seu amor. É como se Ele estivesse procurando maneiras diferentes de manifestá-lo para ver se, com alguma dessas palavras, pode chegar ao teu coração. Por exemplo, às vezes apresenta-Se como aqueles pais carinhosos que brincam com seus ?lhos: “Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto” (Os 11, 4) (CV 114).

Nas madrugadas de vigília, Dom Helder se sentia tão à vontade com Deus e com seus amigos espirituais, como João XXIII, Paulo VI e São Francisco, que conseguia romper a formalidade do “tu”, tornando-se quase um “eu”. É a con?guração plena! Em suas palavras, “Deus se cansa de parecer importante e sério o dia inteiro. São tão poucos os que sabem como Ele é criança e gosta de brincar”14.

Compreensão Helderiana de Vocação

Dom Helder foi um animador vocacional em sua maneira de viver e de amadurecer a visão sobre o sentido da vida e da missão. Sua compreensão sobre vocação pode ser vista sob duas perspectivas: a vocação universal à doação, que compreende a humanidade inteira, e as vocações especí?cas dentro da Igreja. Em ambos os casos, é preciso trilhar um caminho tão ousado como apaixonante. Na medida em que se penetra no pensamento helderiano sobre esse tema, em tempos de Papa Francisco, é visível a proximidade e os paralelos entre os apontamentos de Dom Helder e do Sumo Pontí?ce.

Nos pontos a seguir, busca-se delinear a compreensão helderiana sobre vocação. Em vista da vastidão de sua vida e obra, o foco é o livro “O deserto é fértil”, um roteiro de vida para as minorias abraâmicas. O livro é uma obra de espiritualidade que provém da meditação da própria espiritualidade helderiana, somado a contribuições de outros integrantes das minorias.

3.1 Vocacionado a doar-se por inteiro

Diversas mudanças, que vieram para ?car ao longo da história da Igreja, partiram do clamor do povo. Quando os seus pastores são capazes de interpretar sua realidade e anseios, surgem novidades apaixonantes. Movido por sua esperança em um mundo novo e proximidade com o Deus Libertador, Dom Helder acreditava na irrupção de profundas transformações na Igreja e na sociedade. A libertação dos oprimidos e a construção de um mundo novo têm o seu ponto de partida nas pessoas de boa vontade, que desejam dedicar sua vida para o bem do próximo.

Dom Helder denomina estas pessoas de minorias abraâmicas. Trata-se de um conceito inédito e original que une pessoas de diferentes religiões e etnias pelo mundo. Estas pessoas, espalhadas por todos os lugares, têm em comum o espírito de irmãos e de transformação frente às injustiças da sociedade. São pessoas que não se fecham em seu pequeno mundo, nos pequenos problemas ou nos problemas das instituições a que pertencem. Estas pessoas vão além, se juntando em vista de uma transformação profunda do mundo e das grandes causas para a humanidade.

Uma das novidades do conceito cunhado por Dom Helder é sua capacidade de pensar uma mudança eclesial e social a partir de uma mística que une as pessoas de boa vontade em grandes causas em prol da humanidade. Para quem orienta sua vida dentro da lógica individualista ou prefere a comodidade da vida dos grandes centros e das áreas nobres este chamado se torna inaudível. Porém,

Quem vive nas áreas onde milhões de criaturas humanas vivem de modo subumano, praticamente em condições de escravidão, se não tiver surdez de alma, ouvirá o clamor dos oprimidos […] É fácil, relativamente fácil, escutar o chamado de Deus […]. Difícil é não parar em atitudes emotivas de compaixão e pesar15.

Os integrantes desse grupo, de diferentes religiões, línguas e povos, motivados pela sua sensibilidade diante das injustiças e dos problemas que atingem as mais diferentes realidades, são chamados a pensar a humanidade inteira: “Onde, em que lugar do mundo, não há injustiças, contrastes, divisões? Onde as injustiças não funcionam como violência- mãe de todas as violências?”16 Deste passo surgem as causas importantes na construção de um mundo de mais justiça e fraternidade.

As minorias abraâmicas são vocacionadas a revolucionar a abordagem dos temas cruciais para a humanidade. Preparam dias melhores ao se contrapor à violência armada através da não-violência ativa. Para isso, sabem ser necessário muito mais que pequenas intervenções ou reformas em sociedades apegadas às armas como recurso para perpetuar as injustiças.

Em sua mensagem por ocasião do 56º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, o Papa Francisco destacou esse elemento. Suas palavras recordam que a promessa de um mundo novo, para acontecer, exige que o vocacionado assuma os riscos da missão. Deus não chama para coisas banais, mas para feitos desa?adores. Em suas palavras:

Aceitar a chamada do Senhor quer dizer deixar-se envolver totalmente e “correr o risco” de enfrentar um desa?o inédito; é preciso deixar tudo o que nos impede de fazer uma escolha de?nitiva; é preciso audácia para descobrir o projeto que Deus tem para nós. Devemos con?ar na promessa do Senhor17.

O enfrentamento das estruturas e posturas injustas, em todos os lugares do mundo é muito mais que exercício de uma visão política ou uma bandeira de um grupo religioso. No pensamento helderiano, trata-se de uma vocação mais ampla: doar-se!

Para Dom Helder, um dos espaços capazes de dar força e concretude a essas minorias são as Comunidades Eclesiais de Base. Ali, as pessoas que sonham com a transformação da Igreja e do mundo descobrem forças para tensionar com as estruturas de injustiça e passam a tecer relações baseadas na solidariedade, na justiça e no amor. Dom Helder expressa este horizonte: “As minorias abraâmicas sentem, pressentem que o segredo para a mudança da igreja está em Comunidade de Base, que tentam concretizar os grandes textos e as belas conclusões do Vaticano II”18.

O crescimento da consciência libertadora também carrega o potencial da transformação das estruturas eclesiais através do diálogo e da vivência humilde de um novo jeito de ser Igreja. Essas mudanças acontecem em esferas paroquiais, diocesanas, nas conferências episcopais e precisam chegar a Roma: “Quem conhece a Cúria Romana sabe que já existe, dentro dela, uma esplêndida minoria abraâmica. […] Falta apenas quem se decida a articular a minoria, sem o mais leve espírito de grupo fechado ou de complô”19.

3.2 As cruzes na vida dos vocacionados

Os vocacionados que abraçarem a grande causa da libertação dos oprimidos e a dinâmica do Reino de Deus não podem se iludir: haverá cruzes e desertos em sua jornada transformadora. Os poderosos, quando veem ameaçados os seus projetos, fazem de tudo para conter a mudança. Algumas vezes poderão até ajudar os pobres, mas não aceitam que se pergunte sobre a origem da injustiça. Por isso, somente unidas, as minorias poderão manter a esperança e prosseguir seu caminho na construção de novos céus e nova terra.

O chamado de Deus e os dons concedidos a cada vocacionado são diferentes. Nas palavras do Dom, “Deus parece injusto, mas não é. Pede mais de quem recebe mais”20. Esta conclusão emergente de um olhar para a vocação de Abraão não visa uma postura de superioridade, mas simplesmente uma oportunidade de servir mais intensamente. Dom Helder sabia por experiência pessoal que Deus “Prova-os através de sacrifícios terríveis. Mas sustenta-os, encoraja-os. Dá-lhes a missão arriscada e bela de ser instrumentos de chamadas divinas”21. As vocações especí?cas dentro da Igreja podem ser vistas sob esta ótica. O chamado considera a particularidade das vocações especí?cas. Todas elas, porém, são orientadas para um horizonte maior: a construção do Reino de Deus e a sua justiça (cf. Mt 6,33).

A consciência da cruz diante das opções evangélicas, como é o caso da opção pelos pobres, permite abraçar as opções decisivas para a vida. Sem elas a vida é tomada pelo marasmo. O Papa Francisco expressa a mesma compreensão ao alertar os jovens e vocacionados para não confundirem a felicidade com o sofá, ou seja, com uma vida de comodidades, onde as opções mais importantes costumam ser postergadas inde?nidamente. “Abraão recebeu muito? Respondeu muito. Respondeu ao máximo. Serviu”22.

Ontem e hoje, Deus tem esperança, chama pessoas de boa vontade e sustenta os seus na luta por justiça, por direitos, por projetos alternativos. A consciência helderiana de que o grupo abraâmico é fundamental para um mundo novo, faz indagar sobre o per?l e os espaços onde se investe na animação vocacional. A presença nos círculos onde estão sendo discutidas as questões que mexem com a vida das pessoas e a organização de grupos de vanguarda no que é crucial para a humanidade, se torna um terreno fecundo para o surgimento de todas as vocações. Contudo, não basta esperar a colheita! É preciso realizar o processo, organizar e dar oportunidade, ouvir os clamores dos pobres e ter a consciência de que os vocacionados que despertam para este horizonte precisam pensar grande, ao invés de serem reprodutores das estruturas existentes. É preciso estar nas periferias. O processo de conversão passa pela formação e pelo cultivo de estruturas “evangelizadas”, onde os pobres e excluídos têm protagonismo. É preciso abrir os olhos dos que se sentem chamados, a ?m de perceberem o que Deus deseja de suas vidas.

Um dos limites constatados por Dom Helder nestas minorias é sua di?culdade em se unirem. Os perseguidores sabem disso e seguidamente ridicularizam quem deseja trabalhar por um mundo mais justo, como forma de desencorajar e afastar os demais. Também trabalham para descaracterizar sua mística. Dom Helder foi muitas vezes chamado de comunista, agitador, bispo vermelho, de forma preconceituosa e rasa, para dar a entender que sua opção pelos pobres era somente um projeto político ao invés de expressão da espiritualidade do seguimento a Jesus Cristo.

Acompanhar os vocacionados, mostrando as cruzes que decorrem das opções do Evangelho, é uma tarefa que exige o testemunho. Jesus desejava discípulos com uma clara opção pelo Reino de Deus e sua justiça e não escondia as consequências. No Evangelho de Lucas, por exemplo, antes de chegar a Jerusalém, Jesus realiza três anúncios da paixão para despertar a consciência das implicações do seguimento. Também a Pastoral Vocacional se torna um espaço de anúncio integral da vocação: a vocação presbiteral, por exemplo, não se reduz ao serviço do altar ou ao aspecto da imagem do “ser padre”. Pior ainda é clericalizar as demais vocações! Como assinala o Concílio Vaticano II: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1).

3.3A superação d o eg oísm o e a d il atação d a v id a

Arranca-me, Senhor dos falsos centros. Livra-me, sobretudo, de colocar em mim mesmo meu próprio centro… Como não compreender, uma vez por todas, que fora de Ti tudo e todos somos excêntricos?23

Ontem e hoje, é comum a sociedade e até mesmo pessoas religiosas identi?carem os grandes males da sociedade. No tempo de Dom Helder isso também era comum. Costumava-se demonizar o comunismo, o ateísmo, modernismo, entre outros. Dom Helder foi construindo outro olhar. Ao partir dos dons recebidos de Deus e da vocação a que cada um é chamado, em especial a de pertencer às minorias abraâmicas, sua conclusão é que teremos paz – tanto em âmbito pessoal quanto comunitário – quando os dons forem colocados a serviço. A felicidade não se apresenta como um ativismo desenfreado, antes como consciência de uma missão recebida de Deus e realizada por inteiro. Um dos vazios dos vocacionados – tanto durante o amadurecimento e a formação, quanto depois de já assumirem sua vocação – é a crise da missão. É comum que ela apareça com mais força quando a vocação não foi vivida por inteiro, com a devida intensidade e o contato com as grandes causas de libertação da vida do povo.

Ao fazer leitura semelhante sobre a vida, Dom Helder situou uma fonte diferente da maioria das pessoas do seu tempo para o mal que a?ige o mundo e as pessoas. A batalha decisiva para um mundo novo deve ser travada contra o egoísmo! Nas palavras do Dom:

É importante alertar contra a tentação do egoísmo. De vez em quando o desânimo sopra. Rebenta, forte a impressão de que não adianta querer pensar nos outros. Parece que a saída única é desistir de idealismos, ser prático, cuidar de si e apenas de si. A experiência demonstra que o egoísmo é fonte segura de infelicidade pessoal e de infelicidade em torno de si. O fundamental é ?rmar-se na opção de alargar pensamento e coração24.

Quem se entrega ao egoísmo, acaba por dar voltas em torno de si mesmo. Mesmo pensando ser grande, com essa postura revela a insigni?cância de sua existência e a estreiteza de um horizonte de vida. Mais uma vez salta aos olhos a semelhança com o pensamento do Papa Francisco que, ao falar sobre as vocações especí?cas e a resposta ao chamado divino, compreende que a vocação dilata a vida, expande os horizontes para além do próprio “eu”. Segundo a Evangelli Gaudium, a autorreferencialidade expressa o fechamento na relação com Deus e com as pessoas (EG 8). A Igreja em saída é uma Igreja que, ao invés de olhar para os próprios problemas ou se vangloriar de insígnias, vestes ou obras suntuosas do passado, se dá conta que tem uma missão para realizar, a qual só acontece na medida em que vai ao encontro das pessoas nas periferias existenciais e sociais.

A tendência humana ao fechamento e egoísmo se manifesta nos dias de hoje em suas diversas formas. A Encíclica Fratelli Tutti discorre sobre essa realidade:

Mas a história dá sinais de regressão. Reacendem-se con?itos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. Isto lembra-nos que cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia (FT 11).

Vocação e egoísmo não combinam. Padre e egoísmo não combinam. Religioso(a) e egoísmo não combinam. Vocações leigas, matrimônio e egoísmo não combinam. Vocação e doação total da vida combinam!

3.4 A voz de Deus nos oprimidos

Uma experiência bíblica fundante que permitiu conhecer mais a fundo quem é Deus e iniciar uma jornada milenar segundo os seus desígnios pode ser localizada no Êxodo. Naquela ocasião, diante de tamanha injustiça e opressão por conta do sistema piramidal egípcio, Javé disse: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá- lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel” (Ex 3,7-8). Desde então, passando pelos profetas e chegando à proclamação do Reino de Deus e a sua justiça pela boca de Jesus, está claro que Deus, além de estar ao lado dos pobres, tem neles a sua voz e seu rosto.

Dom Helder foi ainda mais longe ao recordar que mesmo Abraão escutava Deus no seu povo. Ao olhar para a realidade brasileira do seu tempo, nas inúmeras periferias em que esteve e suscitou processos para uma vida mais digna, como o Banco da Providência25, o Dom dos Pobres ouviu novamente aquela mesma voz: “Quem vive em áreas onde milhões de criaturas humanas vivem de modo subumano, praticamente em condições de escravidão, se não tiver surdez de alma, ouvirá o clamor dos oprimidos. E o clamor dos oprimidos é a voz de Deus”26.

Segundo o relato de alguns santos e místicos, ao longo da história cristã, escutar a voz de Deus nem sempre é fácil. Tantos testemunham processos de décadas para poderem a?rmar terem ouvido essa voz. Para Dom Helder, diante do grito dos pobres, escancarado em tantas favelas e periferias, “É fácil, relativamente fácil, escutar o chamado de Deus através dos acontecimentos do nosso tempo e do nosso meio. Difícil é não parar em atitudes emotivas de compaixão e de pesar. Di?cílimo é arrancar-nos do comodismo […]”27. O pobre se torna lugar místico e teológico no encontro com Deus. Mais uma vez, o Papa Francisco manifesta sua sintonia espiritual com as palavras de Dom Helder, ao dizer que a busca por uma vida cômoda e o aburguesamento do coração paralisam a vida dos vocacionados. Por outro lado, o contato com a carne de Cristo na pessoa dos pobres, abandonados, doentes e marginalizados possibilita a superação da passividade28.

3.5 Uma causa para dedicar a vida

Por ?m, um último conselho aos vocacionados extraído da obra helderiana – seria possível ir muito além – é o de não buscar apenas um cargo, posição, estado de vida ou se ver contente a fazer parte de uma instituição – ainda que as instituições sejam necessárias. É preciso ter uma causa pela qual vale a pena dedicar a vida! Aí reside o segredo para ser eternamente jovem. De fato, ao longo de sua vida, Dom Helder se deparou com pessoas assim, como é o caso do Papa João XXIII, que já debilitado no corpo, teve uma mente jovem para convocar o Concílio Vaticano II e o aggiornamento da Igreja.

Contudo, o Dom não parou por aí, já que existem “causas e causas”. Há quem dedique a vida a causas mesquinhas, marcadas pelo individualismo e o egoísmo. Gastar a vida em torno de armas, do ódio e da violência certamente não compensa. Existem questões, diante das quais a vida se torna plena de sentido. Dom Helder lembra do movimento abolicionista brasileiro:

[…] é fácil entender a vibração dos jovens que corriam, alegremente, riscos, ajudando escravos a escapar para a liberdade e promovendo todo um belo movimento de opinião pública para derrubar a estrutura da escravidão. Poetas, jornalistas, tribunos, sacerdotes […] fraternizavam na luta sagrada de querer livres todos os ?lhos de Deus!29

A busca pela independência de todos os povos, através dos movimentos anticolonialistas aparece como exemplo, entre tantas outras causas signi?cativas em favor de um mundo livre. Viver uma vocação “de sacristia” sabendo da existência da causa do século é uma tolice. A causa para a qual toda e qualquer vocação precisa estar orientada é “[…] completar a libertação dos escravos sem nome e que são, hoje, dois terços da Humanidade; completar a independência política dos países que conquistaram a própria soberania, encorajando-os a obter a independência econômica […]”30.

No tempo presente, este paradigma de re?exão possivelmente contemplaria problemáticas como o decolonialismo e a questão ecológica. A escravidão contemporânea é mais sutil e ?ca visível na di?culdade das sociedades pobres em se libertarem da dependência do pensamento e culturas dos países ricos, propositalmente difundidas com a ?nalidade de dominação. A urgência em abraçar a questão ecológica, por sua vez, coloca em xeque o modelo de vida baseado no lucro e no consumo desenfreado e ameaça a existência futura da humanidade.

Um olhar para o pensamento de Dom Helder deixa claro que vocações fechadas em falsas seguranças, das mais diferentes naturezas, ou ingênuas em relação à realidade e ao mundo em que vivem não tendem a perdurar ao se depararem com a realidade do povo. O pior acontece quando travam os processos de libertação, por não desejarem assumir a postura de Jesus e do Evangelho. Os peregrinos de um mundo novo enfrentarão desertos, precisarão estar abertos ao diálogo, terão que sair de si, conjugando a fé com a vida. Mas nada disso é em vão. Viver a vocação, responder a Deus por inteiro é apaixonante!

Não, não pares. É graça divina começar bem. Graça maior, persistir na caminhada certa, manter o ritmo… Mas a graça das graças é não desistir. Podendo ou não podendo, caindo, embora aos pedaços, chegar até o ?m…31

Assim como o grupo dos discípulos de Jesus era inicialmente pequeno, mas foi capaz de dar passos na construção do Reino de Deus e sua justiça, é fato que, em meio à pressão da sociedade atual, marcada pelo individualismo e a idolatria do dinheiro, também são poucos os que despertam como peregrinos de um mundo novo. Porém, a atuação de poetas, jornalistas, membros da Igreja com um olhar para os pobres, tem um potencial transformador que não pode ser ignorado.

4  As “vocações” de Dom Helder

Dom Helder viveu sua vocação de ministro ordenado de forma intensa. Seu carinho pelo sacerdócio foi cultivado desde cedo. Este amor é visível na forma como o sacerdócio foi vivido e aparece em algumas declarações, tais como: “se eu nascesse cem vezes, cem vezes eu agradeceria a Deus a vocação para o sacerdócio”32 e ainda, “a missa é o ponto alto do meu dia”33.

Ao longo da vida foram descobertas outras “vocações especiais” ou formas de aprofundar o chamado recebido. Por várias vezes, o Dom expressou o fato de se sentir chamado para fazer a diferença em frentes, como a vida profética, a promoção da paz, do Concílio Vaticano II, em formar grupos e estar junto aos pobres.

O ato de estar ao lado dos pobres é uma “vocação especial” helderiana bastante destacada. Depois da guinada em sua vida, motivada pela indagação do Cardeal Gerlier “Por que, querido irmão Dom Hélder, não coloca todo este seu talento de organizador que o Senhor lhe deu a serviço dos pobres?”34, despontou mais esta vocação. A partir de então, as periferias e as causas que a?igiam a vida do povo passaram a ocupar lugar central em sua vida e missão. Sua vocação aos pobres permitiu que o palácio episcopal se tornasse casa dos pobres e de todo o povo. Do mesmo modo, a casa dos pobres se tornou também a sua casa. Como Jesus, a Boa Notícia do Evangelho fruti?cou em meio aos pobres.

Dom Helder sentiu-se chamado a ser pregador do Concílio Vaticano II. Nos bastidores do Concílio, realizou seu “apostolado oculto”, optando por não falar nas sessões plenárias, mas fazendo um trabalho intenso na mobilização de teólogos, nas reuniões com os bispos e articulações. O trabalho de Dom Helder contribuiu para a abertura da Igreja e a consistência dos documentos. Mas foi vivendo e colocando em prática a nova imagem de Igreja do Concílio que Dom Helder descobriu sua vocação complementar de pregador do Vaticano II. Em meio aos desa?os e retrocessos do tempo presente, urge a retomada desta vocação helderiana.

A promoção da paz foi outra pauta à qual Dom Helder se sentiu chamado a assumir. Em meio à década de 1960 e 1970, sua luta em favor dos direitos humanos e contra as injustiças, durante a uma ditadura militar, ganhou repercussão mundial. Ao lado de personalidades como Madre Teresa de Calcutá, proferiu inúmeras conferências, denunciando a realidade brasileira e semeando caminhos novos, como o da não-violência ativa. O reconhecimento pelo Nobel da Paz só não veio por conta da articulação do governo militar, que fez intensas campanhas internacionais de difamação do bispo brasileiro, favorito ao prêmio em 1970 e 1971. Em 1972 a estratégia do governo ?cou tão explícita, que a comissão do Nobel preferiu não entregar o prêmio a ninguém.

A vocação para trabalhar em grupos também merece destaque. Não faltam exemplos dessa atuação. A Família Mecejanense lhe deu sustentação e se tornou um elo de diálogo e envolvimento nas grandes causas em que esteve envolvido. Seus registros das vigílias nas madrugadas, partilhados com a família, sustentavam a opção e impulsionavam para a missão. Seus amigos espirituais das vigílias são um grupo muito especial: João XXIII, Paulo VI, São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo são alguns destes amigos espirituais. Sua metodologia pastoral contemplava o envolvimento de muitas pessoas dos meios eclesiais, sociais e culturais. E como não lembrar das pessoas que se aproximavam e eram envolvidas graças às noitadas de literatura, artes, ?loso?a e teologia? A presença de crianças, dos pobres e o diálogo com todas as pessoas revelam como Dom Helder fazia questão de estar rodeado de gente e o fato de saber, como poucos, despertar e envolver estas forças em torno de projetos. Ivanir Rampon destaca esta característica:

Desde o seminário, Helder tinha uma capacidade enorme de trabalhar em equipe. Ele aglomerava, liderava, despertava para o bem, para a verdade, para o belo, para a unidade. Com isso, Deus fez grandes maravilhas em sua vida e, por meio dele, na vida da Igreja e do mundo. Esse seu modo de ser, essa sua espiritualidade e mística foram extremamente importantes para que fundasse a CNBB e o Celam, conduzisse o Congresso Eucarístico Internacional de 1955 e a renovação da Ação Católica Brasileira e fosse um dos grandes articuladores dos padres no Vaticano II.

[…]

O estilo helderiano de “governar” despertava para a “eclesiologia do povo de Deus”, na qual o clero se sentiu presbítero, corresponsável com seu bispo pela caminhada local, enquanto os leigos se organizavam em comunidades, em pastorais, em associações, em movimentos e setores paroquiais e, em comunhão com a hierarquia, assumiam suas responsabilidades na evangelização, dando conscientemente sua indispensável contribuição para a construção do Reino de

Deus – Reino de paz, justiça e amor35.

35 Dom Helder: um testemunho para os presbíteros. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/artigos/dom-helder- um-testemunho-para-os-presbiteros/

O grupo de Espiritualidade e Estudo Re-Vivendo Dom Helder Camara, ligado à Itepa Faculdades, compartilha e busca viver estas vocações especiais helderianas. O ato de formar grupo no cultivo de uma amizade espiritual permite assumir as opções de Jesus, em especial a opção pelos pobres, em sintonia com o Concílio Vaticano II a Igreja latino- americana e o ponti?cado do Papa Francisco36. O Grupo tem consciência que faz parte da nossa comunidade espiritual, o querido Dom Helder Pessoa Camara!

Considerações finais

A habilidade única conjugada com a espiritualidade do seguimento a Jesus Cristo permite entrever na vida de Dom Helder uma vocação marcada pelo cultivo, a busca e a valorização dos dons recebidos no encontro com os pobres. Ao chamar os discípulos, Jesus pediu uma entrega total. Com o vocacionado Helder, Deus colheu uma resposta abundante, com uma vida doada em favor do seu Reino na Igreja e no mundo. Sua vida e missão têm potencial para uma vivência vocacional fecunda.

Olhando para o Terceiro Ano Vocacional do Brasil e a necessidade de aprofundar a re?exão vocacional, Dom Helder emerge como uma referência para uma autêntica Animação Vocacional. Seu discernimento, cultivo da espiritualidade e opções de vida têm muito a contribuir aos jovens e, em especial, aos que sentem o chamado ao presbiterato.

Referências bibliográficas

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CAMARA, Dom Helder. Circulares Interconciliares. III – de 11/11 de setembro a 7/8 de dezembro de 1965. Recife: Obras Completas de Dom Helder, 2009.

CAMARA, Dom Helder. Dom Helder Camara ser padre. Vídeo disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=91eOafZXi1g. Acesso em 12 de dezembro de 2022.

CAMARA, Dom Helder. O deserto é fértil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

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PAPA FRANCISCO. Encontro com os participantes do Congresso “Linhas de desenvolvimento do Pacto Educativo Global”. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-06/papa- francisco-crises-sao-oportunidade-crescer.html#:~:text=%E2%80%9CN%C3%B3s%20 devemos%20aprender%20e%20ajudar,s%C-3%A3o%20uma%20oportunidade%20para%20crescer.

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PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit. Disponível em: https:// www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa- francesco_esortazione-ap_20190325_christus-vivit.html. Acesso em 15 de outubro de 2022.

PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelli Gaudium. Disponível em: https:// www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa- francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html. Acesso em 13 de outubro de 2022.

36 O Objetivo do Grupo de Espiritualidade e Estudo Re-Vivendo Dom Helder Camara é: “Estudar, meditar e rezar o pensamento helderiano a ?m de cultivar e difundir uma espiritualidade libertadora, a serviço da fermentação de uma Igreja Pobre e Servidora e de uma sociedade justa, fraterna, pací?ca e solidária”.

Revista Teopráxis,

Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

PAPA FRANCISCO. Mensagem do Papa para o 56° Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-03/mensagem-papa-para-56-dia-mundial- oracao-vocacoes.html. Acesso em 11 de setembro de 2022.

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RAMPON, Ivanir Antonio. Dom Helder: um testemunho para os presbíteros. Revista Vida Pastoral novembro-dezembro de 2016. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/artigos/dom- helder-um-testemunho-para-os-presbiteros. Acesso em 13 de setembro de 2022.

RAMPON, Ivanir Antonio. O caminho espiritual de Dom Helder Camara. São Paulo: Paulinas, 2013.

1  Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.30.

RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

Revista Teopráxis,

Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

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RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

6 PAPA FRANCISCO, Encontro com os participantes do Congresso “Linhas de desenvolvimento do Pacto Educativo Global”.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.24-25.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p. .

Revista Teopráxis,

Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

PAPA FRANCISCO. Mensagem do Papa para o 56° Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

Dom Helder CAMARA, o artesão da paz, p.149.

Dom Helder CAMARA, o artesão da paz, p.150.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.14.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.14.

Revista Teopráxis,

Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.15.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.11.

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Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

24 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.20.

Revista Teopráxis,

Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

Iniciativa encabeçada por Dom Helder, o banco foi fundado em 1959 com o objetivo de auxiliar os mais necessitados.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.23.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.25.

Cf. PAPA FRANCISCO, Missa de canonização de Laura Montoya e María Guadalupe García Zavala, 12 de maio de 2013.

Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.38.

Revista Teopráxis,

Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

30 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.39.

31 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.41.

32 Dom Helder Camara ser padre, Youtube.

33 Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.328.

34 Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.105.

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RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

Revista Teopráxis,

Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

POTRICK apud Ivanir Rampon, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.306.

Circular 182 de 24/25-4-1965.

Revista Teopráxis,

Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.

RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice Peregrinos de um mundo novo: re?exões vocacionais a partir de Dom Helder Camara

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