Causos do Dom: Gregório, Meu Amigo
Prof. Martinho Condini
Tão logo chegou ao Recife, em abril de 1964, Dom Helder tomou conhecimento do espancamento público do líder comunista Gregório Bezerra, “o homem feito de ferro e de flor”, como definiu o poeta Ferreira Gullar. Gregório foi preso no dia 02 de abril e arrastado pelas ruas do bairro de Casa Forte pelo Coronel Darcy Villocq. Recebido no quartel aos golpes de cano de ferro na cabeça, amarraram cordas ao seu pescoço e o levaram pelas ruas do bairro. O coronel batia constantemente em Gregório, conclamando a população, que assistia estarrecida a cena, a fazer o mesmo. “Linchem este bandido, este monstro tinha plano de matar todas as crianças de Casa Forte”, gritava.
Como o povo não reagia, Villocq ficava mais enfurecido e batia no preso cada vez mais. Gregório registrou em suas memórias: “o tarado do Villocq babava pelos cantos da boca, qual um cão hidrófobo. Continuava a bater-me com um cano de ferro. Eu estava estendido no solo, já banhado de sangue. Meus torturadores tinham o rosto, as mãos e a túnica salpicados com o meu sangue…A dor que eu sentia era tanta que, se eu estivesse com as mão livres, seria capaz de agarrar-me com Villocq, mesmo depois de todo amassado e morrermos juntos”.
Chocadas com as cenas de tortura em plena Praça de Casa Forte, as freiras do Colégio da Sagrada Família ligaram horrorizadas para o comandante do IV Exército, Justino Alves Bastos, pedindo que acabasse aquele desfile macabro. Gregório foi simplesmente salvo pelo público presente. A esta altura tinha duas fendas na cabeça, dentes quebrados, o rosto totalmente deformado. Os pés se encontravam em carne viva, devido à solução de bateria de automóvel. As articulações das pernas todas inchadas, o pescoço todo esfolado.
Três anos após o vandalismo praticado pelo então coronel Villocq, em abril de 1967, Dom Helder, acompanhado do governador de Pernambuco Nilo Coelho, visitou a Casa de Detenção do Recife, onde Gregório se encontrava preso desde de outubro de 1964. Foi convidado para celebrar a páscoa dos detentos e já na primeira fala irritou a autoridade presentes, entre ela o presidente do Tribunal de Justiça e o secretário de Segurança Pública. Lembrou que penitenciária, construída para cento e vinte presos, abrigava mais de oitocentos, o que a transformava em uma “masmorra desumana, uma vergonha para o governo”.
Ao terminar a solenidade religiosa, o arcebispo, que não conhecia pessoalmente Gregório, desceu do palanque e começou a atravessar no meio dos presos, andando em direção ao líder comunista que, supondo que fosse cumprimentar algumas autoridades que se encontravam próximas, procurou dar-lhe passagem. O arcebispo relembraria a cena anos depois: “Em certo momento, descobri, no meio dos presos, cabeça branca, Gregório Bezerra. Fui direto abraça-lo. Era um pagamento atrasado pelos açoites públicos que ele recebeu, dias antes da minha chegada a Recife”.
Parou bem na frente de Gregório.
– Gregório, meu amigo, eu o estava vendo, de longe, a sua cabeça branca, e vim cumprimenta-lo. Como vai a saúde?
Gregório Bezerra, que nas suas memórias também registrou o encontro na Casa de Detenção, descreveu sua resposta:
– Eu também estava vendo e ouvindo a sua pregação religiosa e aproveito para agradecer, em nome de meus companheiros e em meu nome pessoal, de todo o coração, os seus pronunciamentos humanitários em defesa dos presos políticos torturadas e assassinados nas prisões da ditadura militar terrorista que assaltou o poder em 1964. Nós, prisioneiros políticos, jamais esquecermos a sua voz de protesto contra os crimes praticados pelos militares e diferentes quartéis das Forças Armadas. Muita saúde e longa vida, é o que lhe desejamos de todo o coração!
Como não havia mais condições de continuar o diálogo, surpreendido e honrado, cumprimentou o arcebispo. Emocionados, os dois se despediram. Dom Helder relembrou anos depois. “Chorou de emoção o velho forte e me disse: “ Se eu tivesse sido solto, minha alegria não seria muito maior do que a de receber seu abraço, bom pastor! ”.
FILHO, Félix. Além das Ideias: histórias de vida de Dom Helder Camara. 1ª reimpressão. Recife. Cepe. 2016. p.67-68