Causos do Dom: Entre os Mais Pobres
O padre americano Lourenço Rosebaugh, oblato de Maria Imaculada, aceitou o desafio lançado por Dom Helder Camara à sua congregação religiosa: assumir o trabalho pastoral com os moradores de rua do Recife. Viver como pobre entre os pobres. Ao seu lado um jovem missionário evangélico, também norte-americano, Tomás Capuano, que já estava há tempo no Brasil e falava português melhor que o padre. Ciente do perigo que corriam, Dom Helder os advertiu que a polícia podia não entender como um padre e um jovem missionário, gente que tem bastante conhecimento e nível cultural elevado, vivessem no meio da miséria.
– No mínimo vão pensar que vocês são meus representantes para preparar alguma subversão.
Com a benção do arcebispo, passaram a morar nas ruas do centro do Recife, sem um teto sequer, assumindo a pobreza total. Andavam e trajavam, para espanto de muitos, até mesmo para os frequentadores da missa diária da Igreja das Fronteiras, como mendigos. Viviam e dormiam embaixo das marquises dos prédios do centro do Recife e se alimentavam com os restos de comida. Padre Lourenço levou sua condição de pobre a tão longe que, até nas celebrações, passou a ficar afastado do altar.
– Quando eu vier aqui para concelebrar a missa, me deixe ficar num canto. Ninguém precisa saber que estou concelebrando com o senhor. Nos uniremos ao Cristo e celebraremos juntos a Eucaristia, pediu ao arcebispo.
Os dois sofreram todo o tipo de incompreensão, preconceito e intolerância, como havia previsto o arcebispo. Em maio de 1977, o padre Lourenço e o missionário Tomás foram presos e torturados. Passaram dois dias na Delegacia de Roubos e Furtos do Recife, vivendo na pele o sofrimento dos presos comuns. Foram primeiramente espancados e depois obrigados a comer os dejetos dos próprios presos. A polícia tentou, depois, botar a culpa de todas as barbaridades num companheiro de cela, o “Chupa Dedo”. A farsa armada pela polícia de Pernambuco foi repelida, com veemência, por um juiz da Terceira Vara Criminal do Recife. O fato obteve repercussão mundial, pois envolvia dois cidadãos americanos. Em visita ao Recife, no ano seguinte, a mulher do presidente dos Estados Unidos, Rosalyn Carter, desejou conhecer pessoalmente os dois missionários. O encontro aconteceu no Consulado dos EUA no Recife, com ampla cobertura da imprensa internacional.
Tomás Capuano, missionário evangélico, mais jovem que o padre Lourenço, ficou terrivelmente abalado com todas as torturas que resolveu deixar o Brasil. Já o padre Lourenço decidiu continuar o seu trabalho entre os pobres de Recife. Depois de um ano vivendo como mendigo nas ruas do centro da cidade, chegou à conclusão que precisava de um terreno para encaminhar os que vinham do interior do Estado e sabiam trabalhar com a enxada. Procurou Dom Helder que, imediatamente, cedeu um terreno pertencente a Arquidiocese de Olinda e Recife, na zona rural de Itapissuma, região metropolitana.
Junto com quatro ex-religiosas beneditinas, padre Lourenço se instalou no local com doze moradores de rua. No terreno construíram barracas e plantaram uma horta de subsistência. Não demorou muito e começou uma campanha, através de um abaixo-assinado dos moradores das redondezas, para expulsá-los do local. Dom Helder resistiu às primeiras pressões. Era só uma questão de tempo para os moradores constatarem que “seus novos vizinhos” não ofereciam perigo algum. Apesar da pobreza, eram pessoas de bem, maltratadas pela vida.
Mas logo surgiu outro tipo de pressão que o deixou bastante triste.
Desta vez os protestos partiram de dentro da paróquia da Igreja. Alguns monsenhores, pertencentes ao Cabido da Arquidiocese, reclamaram a doação do terreno. Desabafou aos amigos: “Eu, como bispo, não posso doar um terreno da Arquidiocese aos pobres. Vou compra-lo, então, com o dinheiro dos meus livros e palestras”.
O padre Lourenço, por recomendação do arcebispo, passou a procurar um terreno. Em pouco tempo achou um, de dez hectares, em Abreu Lima, também na Região Metropolitana do Recife. Com a orientação de Dom Helder criou uma entidade jurídica, com estatuto próprio, independente da Arquidiocese. Em maio de 1980 foi finalmente registrada com o nome escolhido pelos próprios pobres de rua: “Comunidade de Deus e de Nossa Senhora”.
FILHO, Félix. Além das Ideias: histórias de vida de Dom Helder Camara. 1ª reimpressão. Recife. Cepe. 2016. p.82-83-84.