Causos do Dom: Doutor Lixeira
Prof. Martinho Condini
Por conta da feroz campanha difamatória do regime militar, Dom Helder raramente era convidado para festas e banquetes no Recife. Era um indesejado, uma presença incômoda a ser evitado pelas “pessoas de destaque” na sociedade como governantes, políticos e empresários pernambucanos. Era tratado como “bispo vermelho” pela elite conservadora.
O arcebispo, por sua vez, não gostava de frequentar a alta roda social. E, nas raras vezes em que foi chamado, não deixou passar a oportunidade de mostrar a realidade da pobreza, da miséria, aos homens e mulheres de poder e prestígio na sociedade. “Eles andam sempre de automóveis rápidos demais, sem tempo para ver de perto, tocar a miséria”, afirmava.
Numa dessas raras ocasiões, convidaram-no para a inauguração de uma grande empresa em Recife. O relato dos acontecimentos foi feito ao jornalista francês Roger Borgeon: “Era um dia de intenso calor, mas os escritórios dos diretores tinham o conforto dos aparelhos de ar-condicionado. Os garçons passavam com travessas e mais travessas com garrafas de uísque. Uma, duas, muitas vezes. Eu tomava apenas refrigerante”.
Durante a recepção um dos convidados se aproximou e grosseiramente faz uma provocação ao arcebispo. – Ora, ora, Dom Helder! Como é que vai a sua demagogia? O senhor ainda tem coragem de dizer que estamos cercados de fome e miséria em Recife?
Encorajadas pela provocação, outras pessoas juntaram-se ao agressor e começaram a fazer cobranças ao arcebispo, que não perdeu a calma e respondeu à altura a provocação:
– Vejam só! Eu estava tranquilo no meu canto, mas vocês preferiram provocar-me…. Pois eu lhes garanto que se sairmos todos nos belos carros que vocês têm, em poucos minutos eu os mergulharei num ambiente de terrível fome e miséria.
Para surpresa dele, muitos empresários presentes à festa aceitaram o convite. E pouco mais de dez minutos chegaram a um lixão, onde foram apresentados a um velho conhecido do arcebispo, o “Doutor Lixeira”, funcionário da Prefeitura, cuja longa experiência lhe ensinou a ver, no meio do lixo, o que é que ainda pode ser aproveitado como alimento.
A explicação da classificação dos alimentos foi dada pelo próprio “Doutor Lixeira” aos empresários:
– Comida de primeira classe, que os funcionários da limpeza pública reservam para si mesmos; comida de segunda classe, boa ainda para as pessoas que nada têm do que viver e se alojam por ali, disputando o refugo com os urubus que ciscam como galinhas pretas; comida de terceira classe, que se coleta e guarda para vendê-la depois nas tendinhas de quarta ou quinta classe, onde qualquer coisa serve para encher a barriga daqueles que vivem encharcados de álcool…”
Dom Helder imaginou que a “dura lição” marcaria profundamente a vida daquelas pessoas. Mas, no dia seguinte, uma delas chamou-o ao telefone:
– Dom Helder, que sujeito formidável aquele “Doutor Lixeira”! Ele tem muita iniciativa. Bem que poderíamos emprega-lo aqui na nossa empresa!
– Foi terrível! – constatou o arcebispo. Como estamos longe de ter o espírito do Bom Samaritano.
Ele hoje faria bem mais que dar assistência a vítima dos salteadores e de transportá-lo para um lugar seguro… Ele, por certo, se ocuparia de vítimas cada vez mais numerosas da injustiça. Ele estaria conosco para lutar, por meios pacíficos, mas corajosos, contra as estruturas impiedosas que esmagam e fazem sofrer a humanidade.
FILHO, Félix. Além das Ideias: histórias de vida de Dom Helder Camara. 1ª reimpressão. Recife. Cepe. 2016. p.90-91