Causos do Dom – Clarinha: a pedrinha – 25.08.2022
Prof. Martinho Condini
Na noite entre 6 e 7 de março de 1971, ao se levantar para a habitual vigília, Helder ouve uma voz, vinda de fora. Ele abre a porta que dá para o pequeno jardinzinho ao lado da sacristia da Igreja das Fronteiras, onde mora, e escuta. Parecia voz de rosa, um pouco mais forte, embora também, de timbre aveludado. Seria uma criança? Não descobri ninguém. Uma risada (risadinha inconfundível) e uma voz: “Sou eu: Clara, Clarinha, a nova irmã que o Pai lhe dá”. Era uma pedrinha linda de nosso jardim. Levei uma semana para compreender o que estava acontecendo (Carta Circular 607/03/1971, V,III, p. 103).
Em seguida, ao longo das páginas 13, 119-120 e 207-209 do Tomo V, III das Cartas Ciruculares, escritas entre março e abril de 1971, Helder descreve como – aos poucos – chega compreender que a pequena pedrinha roliça e clarinha, quase luminosa, fala em nome das pedras, ou seja, da terra. Pois ela é uma pedra que fala, é a Alma das Pedras. As pedras têm fama de não ter vida, não ter coração, não ter alma. Nada disso. De dentro de toda pedra, Clarinha nos espreita com um olhar onde há de tudo: bondade profunda, mas, também, brejeirice, ânsia de brincar, espírito de trela. Imaginem o que é viver no íntimo das pedras e só, de longe e longe, descobri poetas e loucos a quem se possa manifestar (p.103)
Clarinha gosta de falar quando a noite atinge o seu silêncio mais profundo, ou quando a noite é particularmente bela, ou quando ela ou eu estamos mordidos de tristeza.
Pois Clarinha está triste. Ela sofre porque os humanos, que se consideram os entes mais inteligentes da terra, não entendem que essa terra – afinal – é uma pedra, que não somente nos sustenta e possibilita a vida hoje, mas que nos origina. Dela proviemos. Mas nem todo o mundo é São Francisco, que fala em Irmão Sol e Irmã Lua, e teria sido capaz de falar na Irmã Pedra. Ela não é mais importante das irmãs, pelo menos para quem vive neste planeta? Não é ela que sustenta nossos pés? É a mais humilde, a menos reconhecida, pois nela pisamos a vida toda.
Foi em noite belíssima, sem lua, mas carregada de estrelas, que ela (Clarinha) me falou sobe corações de pedra. “Que entendem os homens do nosso íntimo para falarem, com desprezo, de “corações de pedra”? Eles nem sabem distinguir uma pedra-adulta. Será que já viram uma pedra-enamorada? Já encontraram uma pedra-grávida? Já ouviram uma pedra-seresteira? Ah! o que os homens fazem com as pedras! O que sofremos quando a vaidade de Reis resolve usar-nos em pirâmides! O que mais nos doía era esmagar, com o nosso peso, os ombros dos escravos. Ah! o que fazíamos para aligeirar nosso peso, tornando-nos mais suportáveis e mais leves! Coração de pedra! Os homens gostariam que diante de uma pedra insensível, fria e má, falássemos em coração de gente? Os homens, que receberam tanto de Deus, perdem a cabeça e não percebem que ainda estão longe de atingir o segredo dos seres. Você, que me ouve e me atende, diga aos homens que não se iludam com a nossa aparente rigidez e frieza. O Pai nos faz duras, para melhor servir aos homens. Mas não temos nada de frias!
Eu teria mil perguntas a fazer a Clarinha. Mas sentia remorso de interrompê-la. E ela, que a silêncios sem-fim se vê condenada, deixou-me sentir o bater de seu coração.
Ela quis ouvir o meu. Quando eu ia dizer que ela tinha coração de pássaro, ou de rosa – tão leves, tão suaves são as batidas! – ela, feliz, felicíssima, como se me anunciasse a melhor das novas, exclamou: “Você tem coração de pedra” (ibidem, pp. 118-120).
Hoornaert, Eduardo. Helder Camara: quando a vida se faz dom. São Paulo: Paulus, 2021.p.196-198. (Coleção Teologia da Vida)