Causos do Dom: Não Deixe Cair a Profecia
Era quinta-feira, 7 de agosto de 1999. No final da tarde, a cidade de Recife tinha vivido uma chuvarada grossa e rápida, como é comum em meses como julho e agosto. O monge beneditino Marcelo Barros, às sete e meia da noite, deveria estar no auditório da Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE) para falar na Jornada Teológica em homenagem a Dom Helder Camara. Ele pediu a Rejane Menezes, jornalista brilhante, uma das organizadoras do evento e amiga pessoal, que, antes de conduzi-lo à Faculdade, se podiam passar, ao menos por um momento, na casa de Dom Helder e cumprimentá-lo.
Algo dizia ao monge, que se ele não fosse naquela tarde, não teria outra oportunidade de vê-lo. Dom Helder acolheu o monge e a jornalista, sentado à mesa da sala, sonolento e absolutamente calado. Os remédios que ele tomava para a inflamação nas pernas o entorpeciam mais do que o cansaço e o peso de seus 90 anos completados no dia 7 de fevereiro.
Zezita, sua incansável secretária, tomou um livro na estante, abriu na página do capítulo que o monge tinha escrito para Dom Helder e pôs diante dele:
– Veja Dom, o que Marcelo escreveu para o senhor…
Marcelo teve a impressão de que ele olhou o texto sem ler. Marcelo segurou a sua mão, beijou-a e perguntou se ele estava o reconhecendo.
– Sou Marcelo Barros, monge beneditino que trabalhou com o senhor na linha do ecumenismo. O senhor me ordenou padre.
Ele concordou com a cabeça como dizendo sim, que reconhecia o monge e se lembrava dos fatos. Mas estaria consciente?
Rejane tomou a máquina fotográfica e registrou aquele momento que foi o último encontro do monge Marcelo Barros com Dom Helder. É uma foto que o monge guarda até hoje em sua bíblia.
Marcelo olhou para o Dom com o carinho de uma criança que olha o seu pai doente. Ele parecia ausente, totalmente ausente. Zezita, com a solicitude e o carinho de sempre, retirou o prato de sopa que ele deixava quase intacto. Levou o prato à cozinha. Rejane conversava com alguém que aparecera na porta. Ele fechou os olhos parecendo cochilar. Marcelo achava que já estava o importunando e resolveu se despedir:
– Dom Helder, estou saindo. Dê –me uma palavra de vida e me abençoe.
Ele se manteve quieto e com os olhos fechados. Atrás do monge, no quarto ao lado, as pessoas conversavam outra coisa. Nenhuma escutou quando, ainda de olhos fechados, ele balbuciou algo. O monge aproximou o ouvido de Dom Helder. Com dificuldade, sussurrou:
– Não deixe cair a profecia.
BARROS, Marcelo. Dom Helder Camara, profeta dos nossos dias. São Paulo: Paulus, 2011. p. 19 a 20.