Causos do Dom: Seria Tão Bom!
Prof. Martinho Condini
Certa vez, em uma audiência privada, com o papa Paulo VI, após ter ido a um Congresso Mundial de Religião e Paz, em Quioto, no Japão, Dom Helder conta ao papa o que se passara no congresso.
– Santo Padre, todas as religiões do mundo estão precisando muito de humildade, ao menos como exemplo para o homem. Mas o mundo anda tão desumano que nenhuma religião tem razão para estar prosa. A pior situação, entretanto, é a nossa, a cristã. Porque, Santo Padre, quando se vê a carta do mundo e se verifica que há países ricos cada vez mais ricos que, de maneira injusta, esmagam a quase totalidade das nações, é triste ver que esses países ricos, e injustamente cada vez mais ricos, são países cristãos, ao menos de nome e de origem. E na parte cristão do Terceiro Mundo, a América Latina, repetem-se, internamente, as mesmas injustiças que os países ricos exercem sobre os países pobres. Ah, Santo Padre, seria tão bom se o senhor pudesse partir para alguns gestos! Porque hoje os jovens, sobretudo os jovens, já não aceitam apenas palavras. As palavras valem na medida em que vão sendo concretizadas. Ai da Igreja se os jovens se convencerem que ela é mestra em chegar a grandes textos, a belas conclusões, mas sem coragem de aplicá-los!
Dom Helder lembrou então quais poderiam ser três desses gestos, que teriam uma influência enorme sobre toda a humanidade, mas principalmente sobre os jovens, avisando ao papa de antemão que sabia que, por enquanto, ele não tinha qualquer condição de concretizar qualquer um deles.
– Mas não é para ficar aflito – continuou Dom Helder a seu amigo Paulo VI. Um dia teremos que criar clima para que o papa possa realizar esses e outros gestos.
Os três gestos que Dom Helder citou a Paulo VI são parte de antiga convicção sua, que ele vem expondo aos poucos, desde os tempos em que teve o que chama de a felicidade de estar por duas ou três vezes com o papa João XXIII, e desde os vários e seguidos encontros com Montini, o monsenhor, o arcebispo, o cardeal e o papa. Todos os católicos, acha Dom Helder, têm obrigação de auxiliar o papa a se libertar, particularmente os bispos. Isso porque “nós mesmos”, como diz ele, ajudamos a criar dificuldades que impedem que os papas realizem aquilo que certamente desejariam realizar.
Toda a visão de uma Igreja do futuro, como a desejava Dom Helder, está resumida nesses três gestos – Igreja aqui, entendida exclusivamente sob o aspecto institucional. A concretização desses gestos, porém, não deixaria de ter larga e imediata repercussão espiritual sobre a Igreja como um todo, talvez principalmente sobre suas bases. Pois seriam modificações materiais e estruturais de cúpula, mas como resultado de um movimento nascido de baixo para cima – e só assim as modificações teriam sentido. Seriam esses gestos:
Fechar o Banco do Vaticano
Dom Helder viu em Quioto que todas as grandes religiões infelizmente estão em engrenagens de dinheiro. Compreende-se. Os líderes religiosos recebem dinheiro para ajudar a manter o culto, para manter obras sociais, ajudar a expansão missionária. E numa época de inflação em boa parte do mundo, é preciso aplicar o dinheiro. E aplicá-lo bem, senão ele se deteriora. Pronto. Nessa sequência citada já se caiu na engrenagem. Mas se é verdade que todas as grandes religiões estão na engrenagem do dinheiro, não são todas as religiões que chegam a ter um sistema bancário próprio. Claro que se pode argumentar que não é a Santa Sé, mas o Estado do Vaticano. A distinção, entretanto, na prática, é sutilíssima aos olhos de Dom Helder e de quem quer que prefira a Igreja exclusivamente como força espiritual. E explicando isso a Paulo VI, Dom Helder concluiu:
– Ah, Santo Padre, seria tão bom! Eu sei que o senhor por enquanto não pode. Mas seria uma maravilha se o senhor pudesse fechar o Banco do Vaticano, o Banco Católico do Vêneto, o Banco de Roma e, sobretudo, o Banco do Espírito Santo!
Acabar com os núncios apostólicos
Foi assim que Dom Helder expôs este segundo ponto ao papa:
– De novo quero começar dizendo – repetindo – que sei que o senhor não pode. Mas sei também que o senhor é um homem lógico, que nunca usou a tiara, usa apenas essa mitra tão simples, inventou o báculo, por sinal que em cruz, numa linha moderna, belíssima, tão ao nosso tempo. O senhor compreende, portanto, que o papa não é rei, não é e não deve ser rei. Mas, Santo Padre, o senhor ainda é obrigado a manter o equívoco, me perdoe, de embaixadores em volta do papa. E mantém núncios apostólicos pelo mundo inteiro. Ah, que pena que o senhor ainda não possa! Mas seria maravilhoso se um dia, numa bela missa de Natal, o senhor desse um “ciao” a seus embaixadores e chamasse de volta para Roma os seus núncios.
O fim do Vaticano tal como existe hoje
Sobre o último dos três gestos Dom Helder faz a explanação mais longa:
– Com razão ou sem razão, o Vaticano se tornou um contra-sinal, sobretudo para os jovens. Ah, como seria bom se o senhor pudesse doar o Vaticano à Unesco, a serviço da cultura mundial! O Vaticano com seus jardins, a sua biblioteca, a sua pinacoteca, que maravilha! Santo Padre, o senhor conhece Roma palmo a palmo. Ah, como seria bom – eu sei que por enquanto o senhor não pode -, o senhor, que conhece cada recanto de Roma, descobrir uma casa pequena, uma casa de dimensão humana, que passasse a ser sua nova casa! Uma casa abrindo para uma praça, de tal maneira que o senhor pudesse receber os peregrinos do mundo, mas recebê-los como gente. Santo Padre, o senhor sabe do respeito imenso que eu tenho por Pedro. Pedro, que tem de fato um papel em nome de Cristo, no seio da colegialidade episcopal, um papel no seio de toda comunidade cristã universal. E o senhor sabe a amizade pessoal, a devoção pessoal que lhe tenho. Mas eu lhe digo, me perdoe, eu já não posso participar daquelas assembleias de domingo, quando o senhor aparece naquela janela e fica ali tão longe, fazendo aqueles gestos… Ah, me perdoe, mas me dá a impressão de uma marionete! Como eu gostaria de vê-lo no meio do povo! O povo segurando o papa, empurrando o papa, todo mundo dando a mão ao papa, como com certeza faziam com Cristo. Naturalmente, seus conselheiros dirão que não pode ser, que há o perigo até de um atentado. Me perdoe, Santo Padre, mas todas as noites eu peço para que o papa um dia seja morto. Há tanto tempo que um pastor não morre pelas suas ovelhas…
– Me escreva tudo isso, me escreva tudo isso – foi a reação imediata e pressurosa de Paulo VI.
E, naquele momento, ele mesmo ensinou a Dom Helder como fazer a carta chegar diretamente às mãos dele.
CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 202- 203-204-205-206.