Causos do Dom: Um Diálogo Fraternal
Prof. Martinho Condini
Para Dom Helder, tudo é graça, como era para a Bernanos e, antes dele, para Teresa de Lisieux. (…) Na mesma ordem de grandeza das graças recebidas de Deus por escolha d’Ele, nascimento, batismo, ordenação, sagração episcopal, Dom Helder situa o privilégio de ter participado do Concílio Ecumênico Vaticano II, cuja importância ele descreve assim:
– E uma virada na Igreja de Cristo! Porque a Igreja é dividida no seu fundador, mas fica entregue à nossa fraqueza humana. E nós, criaturas humanas, ao longo dos tempos vamos introduzindo nossas fraquezas na Igreja de Cristo. Chega um momento em que nem sabemos como livrar a Igreja do Cristo das engrenagens em que a envolvemos. Ou, às vezes, sabemos. Mas não temos coragem, não temos ânimo para isso. Porém, como, apesar de nossas fraquezas, ela continua de Cristo, o espírito de Deus vela permanentemente sobre ela e de vez em quando arranca a Igreja de Cristo dessas engrenagens, das quais ela sai sangrando, porém mais bela do nunca.
Desta vez, o espírito de Deus foi buscá-la através das mãos do Papa Bom, João XXIII.
– Em menos de cinco anos, João XXIII (Angelo Roncalli) foi o instrumento de Deus para uma revolução, no melhor sentido da palavra. A palavra tem às vezes uma conotação pequena, miúda. Às vezes, chamam de revolução certos movimentos tão inglórios…, mas revolução é mudança profunda e rápida, como fez João XXIII. Em menos de cinco anos, como a Igreja de Cristo foi sacudida! Quando me lembro, por exemplo, que em lugar de começarmos a estudar a Igreja do Cristo pelo papa, depois pelos bispos, em seguida pelos padres e religiosos, pelas religiosas e, afinal, pelos leigos, no Concílio começávamos e estudá-las pelo povo de Deus, ah, isso me emociona muito! Porque povo de Deus somos todos nós. E, ainda hoje, padres e bispos temos de lutar conosco a fim de abrir efetivamente para o leigo o lugar que lhe cabe. O leigo é a Igreja! O leigo tem uma missão própria na Igreja do Cristo. E esse é um dos dados fundamentais da revolução profunda de João XXIII.
E não só o Concílio em todos os seus aspectos grandiosos foi uma graça especial para Dom Helder, mas o próprio contato pessoal com João XXIII. Falar desse contato pessoal é difícil para Dom Helder, que fica sempre em dúvida sobre até que ponto é possível “contar segredos do rei”, revelar coisas tão íntimas. Algumas passagens, porém, o discernimento claro de Dom Helder acredita poder revelar com tranquilidade. Como, por exemplo, o primeiro encontro entre ambos, quando Dom Helder foi a João XXIII em missão oficial do presidente Juscelino Kubitscheck, a fim de convidá-lo para a inauguração de Brasília.
Esse encontro, aliás, foi testemunhado e não chega por isso mesmo a constituir qualquer segredo. Dom Hélder foi ao Vaticano com o embaixador Moacir Briggs, que representava o Brasil junto à Santa Sé, e com o embaixador Acióli, que tinha desempenhado antes o mesmo cargo. O fato de o próprio João XXIII ter ido abrir a porta da sala onde os esperava é o primeiro por menor que marca bem a sua personalidade. Que outro papa faria isso de levantar-se e ir pessoalmente abrir a porta para seus visitantes? A seguir, ao receber Dom Helder, o grande papa dá outra demonstração de sua alegria interior e simplicidade, ao saudá-lo tão brincalhão, rindo ao abraçá-lo:
– Ora, me disseram que ia receber um grande bispo, e eu recebo um pequeno bispo…
Falou em italiano, com um sorriso que era toda a sua imensa bondade, como lembra Dom Helder. O informalismo, o à-vontade que João XXIII teve a gentileza de criar imediatamente no encontro oficial (pois se tratava de um encontro oficial), animou Dom Helder, depois de alguns minutos de palestra, a pedir que se encerrasse ali a missão de embaixador extraordinário que desempenhava, para falar-lhe de filho para pai. João XXIII, então, pôs a mão sobre a de Dom Helder e foi muito direto:
– Diga o que quiser, meu filho.
E Dom Helder:
– Santo Padre, será que cometo um erro julgando que é um engano pensar que o problema mais grave do mundo é o embate entre capitalismo e comunismo?
João XXIII imediatamente:
– Não é esse o maior problema do mundo.
Dom Helder, de novo:
– Diga-me, Santo Padre, se estou enganado quando acho que o maior problema do mundo é o distanciamento cada vez maior entre países ricos cada vez mais ricos e a massa enorme dos países pobres cada vez mais pobres?
– Creio que está aí o maior problema do mundo.
– Então, Santo Padre, me perdoe, mas o importante é sua ida ao Brasil, como ardentemente deseja o presidente do meu país, mesmo sabendo de sua impossibilidade, pelo menos imediata, de fazê-lo. E eu até sou insuspeito, porque como brasileiro, claro, gostaria imensamente de vê-lo indo à minha terra. Mas há alguma coisa de mais urgente a fazer, Santo Padre. Santo Padre, vá a Jerusalém! Cidade Santa, a meio caminho entre o Oriente e o Ocidente, a sua ida a Jerusalém, o fato de um papa arrancar-se do Vaticano, terá o efeito de uma bomba nuclear de paz. Será uma explosão de amor, será um feito extraordinário. Então, no meu pensamento, o senhor convidaria os chefes de Estado dos países industriais e dos países produtores de matérias-primas, e haveria um apelo seu, em nome de Cristo, para que cessasse esse distanciamento cada vez maior entre países e países, entre mundo e mundo.
João XXIII, que ouviu tudo com muita atenção, respondeu então, repetindo a frase por três vezes, muito comovido:
– É preciso fazer isso!
Para depois completar, como que mergulhado em desilusão:
– Mas eu não posso fazer isso!
A essa altura há um diálogo quase fraternal, e Dom Helder volta a falar:
– Santo Padre, me perdoe o senhor, mas desde menino eu aprendi que acima do papa só existe Deus!
E João XXIII, voltando a sorrir:
– Ah, se você estivesse no meu lugar, saberia que há oito pessoas que me controlam!
CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p.40 a 45.