Causos do Dom: Quaisquer Que Sejam as Consequências

Causos do Dom: Quaisquer Que Sejam as Consequências

Prof. Martinho Condini

As táticas de perseguição contra Dom Helder variaram muito. No início da fase máxima de repressão do regime militar de 1964, que começou em 1969 (depois da edição do AI-5, em dezembro de 1968), a ordem era dar o gelo no arcebispo. Durante esse período, Dom Helder fez uma conferência em Paris que irritou profundamente os militares donos do poder. Foi a 26 de maio de 1970, no Palácio dos Esportes. Irritou-os tanto que eles resolveram mudar de tática. Até o fim daquele ano, então, pipocou por todo o país orquestrada campanha contra Dom Helder. O governo Médici ordenou que todos os órgãos de imprensa: jornal, rádio e TV não publicassem nada a respeito de Dom Helder. Esse cala boca em Dom Helder perdurou por sete anos.

Que conferência foi essa, no Palácio dos Esportes, que no Brasil quase abalou o sistema, aparentemente a provocar-lhe complexos de culpa? Sua história realmente é diferente das outras conferências que Dom Helder costumava fazer pelo mundo. Assim relatou Dom Helder:

“Quando cheguei a Paris, levava a palestra preparada. Me lembro bem que o tema era a responsabilidade da França em face das revoluções que impõem nos nossos dias. Partia da Revolução Francesa para cobrar à França que ajudasse o mundo a ter a famosa trilogia Liberdade-Igualdade-Fraternidade. Levei a palestra escrita e a guardo comigo até hoje. Mas, chegando à casa do meu querido e fraterno amigo cardeal Marty, arcebispo de Paris, encontrei cerca de vinte e cinco pessoas que ele tinha reunido, pessoas-chave, pessoas que realmente conheciam a França e o mundo, e as vinte e cinco, incluindo o próprio cardeal Marty, tinham uma mensagem a me transmitir. Lembraram-me, primeiro, que sempre que chego a um país afirmo eu não me sinto um estrangeiro lá, que me sinto irmão de todos e, assim, digo tudo que penso sempre com liberdade muito grande, não deixando de fazer as críticas que julgo justas. Em função disso, me cobravam a verdade sobre o Brasil daquele momento, pediam-me que contassem com coragem necessária o que se passava no Brasil naquela hora, que falasse das torturas, de cuja existência no meu país tinham conhecimento. E concluíram: ou eu fazia aquela denúncia publicamente aos franceses ou perderia força moral para denunciar as injustiças e os absurdos que se passam nos outros países”.

                Uma lógica, sem dúvida, irrefutável. Dom Helder também compreendeu assim. E teve que deixar de lado a conferência que preparara e falar de improviso no Palácio dos Esportes, naquela noite com sua capacidade de lotação superesgotada: além das 10 mil pessoas que completaram a capacidade permitida, mais 10 mil – segundo os jornais e revistas de Paris, na ocasião – ficaram do lado de fora, paradas na porta ou percorrendo as cercanias do ginásio, em busca de um ingresso que não mais existia ou de outro modo qualquer de entrar. As fotografias testemunham a superlotação, aliás exatamente o que o cardeal Marty previra de manhã nas conversas com Dom Helder. Informations Catholiques Internationales  de 15 de junho seguinte, número do qual o noticiário sobre Dom Helder ocupa o espaço principal (capa, editorial e mais oito páginas), tenta uma explicação sumária para o fato, buscando razões pelas quais “esse homem miúdo, com forte sotaque estrangeiro e que só diz coisas simples, consegue hoje movimentar multidões na maiorias dos países do primeiro mundo”.  É que, segundo a mais respeitada revista católica francesa, “hoje como ontem – e como sempre – os homens admiram seus semelhantes que não hesitam em arriscar suas vidas para defender as ideias em que creem. Hoje como ontem – e como sempre – as testemunhas não temem se sacrificar, se isso for necessário, para que seu testemunho seja ouvido, tornam-se dignas de respeito. Dom Helder é um desses e o mundo inteiro começa a compreender isso”.

Para seu improviso no Palácio dos Esportes, Dom Helder escolheu sem pestanejar o título “Quelles que soient lês consèquences” (Quaisquer que sejam as consequências). Mas, pastor responsável, teve o cuidado de só citar em suas palestras casos exaustivamente comprovados pela Comissão Internacional de Juristas e de que ele, de uma forma ou de outra, tivesse tido um conhecimento pessoal seguro mais detalhado. Contou, portanto, apenas a verdade.

Dom Helder denunciou a existência de práticas de tortura no Brasil a partir de dois exemplos: o primeiro do estudante Luís Medeiros de Oliveira, preso e torturado em Recife, o segundo, o padre dominicano Tito de Alencar (Frei Tito), padre dominicano de 24 anos, preso e torturado, que após libertado, mas totalmente deprimido tentou o suicídio.

 Frei Tito veio a se suicidar em 1974 no Convento Sainte-Marie de La Tourette, Éveux, na França, em consequências dos traumas da época em que esteve nos porões da ditadura.

Dom Helder contesta todos que diziam que ele ia ao estrangeiro para difamar a imagem do Brasil.

“Muito ao contrário. O que fiz foi defender a justiça. Se combato as injustiças quando são cometidas em qualquer parte do mundo, porque haveria de calar quando essas injustiças e arbitrariedades se passam dentro do meu país? E repilo essa história de problemas internos. Hoje os problemas ganham rapidamente dimensão internacional. Estão aí o rádio e a televisão a levar tudo para o mundo inteiro em pouco tempo. É uma ilusão pensar que há problemas internos”.

A atitude de Dom Helder irritou de tal maneira os militares, que as consequências, como Dom Helder chegou a prever no título da conferência não demoraram a surgir. Até o fim daquele ano, então, pipocou por todo o país orquestrada campanha contra Dom Helder. O governo Médici ordenou que todos os órgãos de imprensa: jornal, rádio e TV não publicassem nada a respeito de Dom Helder. Foi instituída a lei do gelo, Dom Helder passou a não existir. Foi lhe decretada a morte civil. Foram sete anos de absoluto silêncio sobre o arcebispo de Olinda e Recife.

Um dia, um dos mais conceituados redatores da revista que queria Dom Helder como colaborador contou ao arcebispo o que lhe tinha dito o presidente da empresa:

– Agora só noticiaremos alguma coisa sobre Dom Helder quando se tratar de narrar-lhe o enterro.

Mas, o silêncio foi rompido em 24 de abril de 1977, a repórter Divane Carvalho, da sucursal do Jornal do Brasil no Recife, publicou no Caderno Especial daquele domingo, uma entrevista com Dom Helder, tendo como título “Quanto mais negra é a noite, mais carrega em si a madrugada”.

CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 179 a 182.

ARAUJO, Edvaldo Manoel. Dom Helder Camara profeta-peregrino da justiça e da paz. Aparecida do Norte, SP: Ideias & Letras, 2011, p. 162-163-164.

*O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros ‘Dom Helder Camara um modelo de esperança’, ‘Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo’, ‘Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire’ e o DVD ‘ Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro ‘Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza’. Contato profcondini@g

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