Causos do Dom: O Grito do Silêncio

Causos do Dom: O Grito do Silêncio

                                                                                                                                 *Prof. Martinho Condini

Padre Henrique foi trucidado de um modo terrível. Ele trabalhava com os jovens, era respeitado e querido pela seriedade de seu trabalho. Ele estava diretamente ligado a Dom Helder. Por isso começou a receber ameaças do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

Corpo de Pe Henrique abandonado no matagal

Uma noite sua família – padre Henrique morava com os pais – se assustou: padre Henrique não voltou para casa para dormir. A família ficou apavorada, era o ano de 1969, vivíamos a violenta repressão dos Anos de Chumbo do governo Médici. Apesar da tensão e do nervosismo, os pais só avisaram Dom Helder às 9 horas da manhã seguinte. Imediatamente Dom Helder e o seu bispo auxiliar Dom José Lamartine Soares, saíram à procura do jovem padre, dando início a grande tragédia contada por Dom Helder:

“Saí com Dom Lamartine e, como já temos uma certa prática, fomos primeiro aos hospitais.   Padre Henrique não estava em nenhum deles. Depois de mais de duas horas de buscas, achei  que já era hora de ir verificar no necrotério. Joguei com todas as hipóteses possíveis, pois sabia  das ameaças, mas, claro, podia ter havido um desastre também, um acidente. Quando chegamos ao necrotério, lá estava nosso padre Henrique, como um cadáver desconhecido.  Uma hora mais e ele seria sepultado como indigente não identificado. Seu corpo era uma coisa impressionante, tinha sido trucidado. Porque além de uma bala na cabeça, à queima roupa, ele também tinha sido estrangulado. Uma coisa tremenda. Imediatamente o identifiquei e pedi que fizesse autópsia. Pedi então a Dom Basílio Pinto, abade do Mosteiro de São Bento, em Olinda, que é um verdadeiro irmão nosso e é médico, que acompanhasse o exame do médico legista. E requisitamos o corpo.” 

Dom Helder relembra o emocionante enterro de padre Henrique:

                “O enterro foi uma dessas consagrações que a gente, por mais que viva, não esquece mais. O     corpo nos foi entregue por volta das 6 horas da tarde. Eu o levei para a Igreja do Espinheiro. Já        naquele tempo, mesmo que rádio, televisão e imprensa não dessem destaque ao fato, como   não deram, as nossas Comunidades de Base podiam receber e transmitir facilmente um aviso, e nós, no dia seguinte, na hora de sair o enterro, tínhamos lá umas 10 mil pessoas, todas dispostas a acompanhar o corpo até o cemitério. Aí houve momentos emocionantes. Num certo instante, íamos cantando Prova de Amor maior não há/Que doar a vida pelo irmão (um dos cânticos do Ofertório, nas missas), quando vieram avisar que havia tropas cortando completamente a passagem dois quarteirões à frente. Tínhamos que caminhar ao todo uns seis ou sete quilômetros, da Igreja do Espinheiro até o cemitério da Várzea, seguindo sempre pela    Estrada de Caxangá, na qual estávamos quando chegou esse aviso

Igreja do Espinheiro
Igreja do Espinheiro

. Então tomei a precaução de que naquela hora o caixão fosse carregado apenas por padres, e fiquei diante do caixão, tendo ao lado Dom Lamartine e Dom Abade [é como costumam ser chamados os superiores de mosteiros beneditinos, no caso Dom Basílio]. Assim fomos até pertinho dos soldados, sempre cantando Prova de Amor maior não há. Aproximou-se então um tenente, que comandava as  tropas, e disse: ‘Se retirarem as faixas, o esquife passa’. Só então reparei que os grupos de   jovens que acompanhavam o enterro carregavam várias faixas. Chamei-os e perguntei se concordavam em largar as faixas. Todos concordaram, cheios de compreensão. Aí então houve alguma violência, a polícia rasgando algumas faixas. O ambiente ficou carregado. Mas afinal a polícia deixou que o caixão passasse. Por sinal que fizeram uma espécie de corredor polonês, no meio do qual passou o esquife, erguido, no meio de armas. Há fotografias desse momento, que nunca puderam ser publicadas. Pouco depois veio um segundo aviso. A tropa de novo estava à frente do cortejo. Mas dessa vez os soldados quiseram prestar uma reparação.  Estavam sem o quepe, de novo formaram alas e o esquife passou no meio. Chegamos então ao cemitério. No meio da multidão havia sempre policiais espalhados, ouvindo tudo o que diversos grupos conversavam e fazendo transmissões para vários pontos, com aqueles rádios de campanha. Eu aí recebi um aviso que se, à beira do túmulo, houvesse qualquer tentativa de discurso, qualquer tipo de fala, a multidão seria imediatamente dispersada, se preciso a bala. “Não sei se atirariam mesmo, mas foi um aviso de violência enorme.”

Diante do túmulo, Dom Helder precisava transmitir à multidão, então, a necessidade de silêncio. Foi então que, para repassar de algum modo o aviso dos militares, fez um pequeno e comovedor discurso, driblando assim a proibição, ainda que não quisesse fazê-lo, pois não queria provocar ninguém. E falou rapidamente:

– Meus irmãos, estamos aqui depois de ter cumprido o nosso dever para com nosso irmão padre Henrique. Caminhamos quilômetros e quilômetros cantando e rezando.  Agora, não vamos ceder a provocações, como nenhuma houve pelo caminho. Nenhum discurso aqui dentro. Nenhuma exaltação. A melhor homenagem que podemos prestar a padre Henrique será rezarmos um Pai-Nosso enquanto seu caixão baixa à sepultura. E depois ficarmos em silêncio. Eu quero este sacrifício. Eu quero que voltemos para casa em silêncio. Quero que esta multidão inteira saia daqui em silêncio. Vamos nos retirar rezando, meditando, em silêncio, em silêncio. Nada gritará mais do que o nosso silêncio.

Rezou-se o Pai-Nosso, o corpo baixou à sepultura e todo mundo foi saindo. Mas ai foi aquele silêncio que não se ouvia nada, nem mesmo os passos das pessoas, tão silenciosamente se caminhou. Um silêncio impressionante. Todo mundo rezando pelo caminho. Em silêncio.

Nesse dia a emoção foi forte demais. Nem se fale da noite anterior, toda velando o corpo de padre Henrique na Igreja do Espinheiro. Nem do cansaço de acompanhar o enterro por tantos quilômetros. Nada disso. A natureza maior do abatimento, mesmo do cansaço físico de Dom Helder, pode ser resumida numa só frase dele. Ou talvez duas, tentando explicar a forma maior da emoção:

– Afinal de contas, eles morrem no lugar da gente. São torturados e morrem no lugar da gente.

Sob essa carga de emoção, foi tranquilamente que Dom Helder se dirigiu ao Cristo nessa noite, quando o despertador tocou, e disse:

– Cristo, hoje a oração é de São Pedro.

Virou para o canto e dormiu outra vez. Uma das raras, raríssimas noites em que dormiu de novo, no mesmo instante.    

CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002,p. 147 a 151.

*O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros ‘Dom Helder Camara um modelo de esperança’, ‘Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo’, ‘Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire’ e o DVD ‘ Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro ‘Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza’. Contato profcondini@gmail.com

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