Causos do Dom: Às Vésperas do Golpe
- Prof. Martinho Condini
Após o histórico discurso do presidente João Goulart, o Jango, aos sargentos no Rio de Janeiro, na noite de 30 de março de 1964, Dom Helder, então secretário-geral da CNBB, foi dormir angustiado. Na manhã seguinte, bem cedo, telefonou para o arcebispo de São Paulo, o cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, que era o presidente da CNBB.
Disse a ele, com quem tratava dos assuntos mais graves em absoluta confiança, que precisava ter uma conversa da maior importância e urgência. Ambos andavam tão sintonizados que a razão que levaria Dom Helder a São Paulo estava levando Dom Carmelo ao Rio de Janeiro. Às 10 da manhã do dia 31 de março, Dom Carmelo chega ao Rio, e assim que encontra Dom Helder, descobriram que a preocupação dos dois era uma só: a necessidade de se fazer um apelo desesperado ao presidente João Goulart – julgavam que ele estava em plena ilusão, marchando para uma revolução da qual pensava que sairia vitorioso – para que pusesse um freio em sua corrida.
Os dois bispos tinham certeza, que por esse caminho, Jango acabaria levando o país a uma ditadura implantada exatamente pelas forças que se opunham a ele. Dom Helder então utilizou o telefone privado que dispunha, para manifestar ao presidente Jango o desejo do arcebispo de São Paulo, na qualidade de presidente da CNBB, de ser recebido em audiência privada, juntamente com o secretário-geral da entidade, o próprio Dom Helder. Jango pediu então que ambos fossem almoçar com ele. Nesse ponto, Dom Helder pediu licença ao presidente da República, cobriu o fone com a mão e falou com Dom Carmelo do convite para um almoço, manifestando sua opinião de que o almoço não seria conveniente, mas apenas a audiência. O cardeal respondeu em cima:
– Aceite o almoço, mas imponha condições. Que seja estritamente para nós três, o presidente, você e eu. Não haja ninguém para servir. Que todos os pratos estejam na mesa e nós mesmos nos serviremos.
O presidente aceitou e foi realmente assim que começou o almoço, no qual, na realidade, muito pouco se comeu. A grande preocupação dos dois dirigentes da CNBB foi mostrar ao presidente da República que se estava indo por um abismo perigosíssimo. Mas o presidente estava certo de contar com os generais, como disse aos dois homens da igreja. Dom Helder tentou fazer ver que aquilo era um grande equívoco. Jango respondeu então, como que reconhecendo que sua certeza em relação aos generais não era tão grande assim:
– Mas certamente conto com os sargentos e com a CGT.
E Dom Helder:
– Presidente, não se iluda, não existe Confederação Geral dos Trabalhadores no Brasil. Uma CGT é o coroamento de toda uma vivência de sindicalismo autêntico. No Brasil nós temos, sem culpa dos trabalhadores, uma legislação trabalhista até avançada, mas que foi outorga de um ditador à classe trabalhadora. Então não há uma vivência sindical. A experiência que temos, infelizmente, é de muito peleguismo, o que não conduz jamais a uma autêntica CGT.
E, quanto a sargentos, a ilusão é maior ainda, presidente. Ao menos no Brasil, o sargento está de tal maneira acostumado a obedecer que, se estiver com uma metralhadora na mão e um coronel ou um major der um grito, ele larga a metralhadora e faz continência.
Não houve entendimento entre eles embora a cordialidade imperou no almoço de tanto falar e pouco comer. Jango parecia seguro de ter os trunfos essenciais na mão. Dom Helder ainda tentou insistir, no fim da conversa:
– Presidente, vamos partir para uma ditadura militar. Os militares não vão aceitar essa sua política de reformas da noite para o dia. Os Estados Unidos estarão por trás, dando-lhes cobertura. Não permitirão uma vitória da esquerda neste país. O Brasil é chave para a América Latina inteira. Vamos ter ditadura militar no duro. E o senhor será responsável em grande parte.
Nessa altura da conversa, Jango sempre descartando os argumentos de Dom Helder, era quase o momento da despedida quando entra um fotografo e bate uma chapa. Dom Helder, que tinha tratado as condições do encontro, protestou imediatamente.:
– Presidente, me perdoe, mas isto está contra todas as combinações.
Jango foi categórico:
– Minha palavra de honra como é para o meu arquivo pessoal.
Naquele mesmo dia, 31 de março de 1964, ocorreu o golpe que depôs o presidente. Após quatro dias Jango viajou para o Uruguai, onde pediu asilo político.
E a fotografia do almoço?
Dom Helder, fiel à sua conduta de jamais julgar alguém, não acusa em hipótese alguma Jango de ter faltado a um compromisso de honra.
Em 2 de abril de 1964, por um equívoco qualquer e bastante desagradável, a fotografia daquele encontro estava em todos os jornais.
CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.p. 109 a 113.
*O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros ‘Dom Helder Camara um modelo de esperança’, ‘Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo’, ‘Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire’ e o DVD ‘ Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro ‘Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza’. Contato profcondini@gmail.com