Causos do Dom: Um Bispo em Davos
*Prof. Martinho Condini
Durante o período em que Dom Helder foi proibido de falar em seu país, ele recebia dezenas de convites para falar em várias partes do mundo. Um dos temas abordados pelo arcebispo era a relação entre os países ricos industrializados e os países pobres fornecedores de matéria prima. Certa vez, Dom Helder, em Davos (Suíça) participou do IV Fórum Europeu de Chefes de Empresas. Ele foi convidado para falar sobre o papel das empresas multinacionais nos países produtores de matérias-primas, isto é, países pobres. Aceitou, como sempre, desde que tivesse total liberdade para dizer o que quisesse. Com essa garantia, foi logo dizendo que seu depoimento de homem do Terceiro Mundo seria o mais sincero possível, que falaria com toda franqueza.
Assim, começou afirmando que “em nossos países, na América Latina, já conhecemos um tipo de colonialismo interno”, pelo qual os privilegiados mantêm a própria riqueza à custa da miséria dos concidadãos. E logo chamou a atenção para o fato de que, ao dizer isso, não estava julgando intenções, mas apenas constatando uma realidade. E entrou no capítulo das multinacionais dizendo: logo que chegam, elas em geral se aliam (às vezes as leis até exigem que elas se aliem) aos grupos nacionais, o que para elas é conveniente, pois dessa forma já não chegam com um nome estrangeiro, mas com um belo nome nacional. Quando não conseguem isso, porém, mantêm o nome de origem e acrescentam no fim um pomposo “do Brasil”, por exemplo. Em geral – e os empresários continuavam ouvindo curiosos, nessa reunião de Davos – as multinacionais buscam nos países pobres paraísos para investimentos.
Paraísos não só porque dispõe de matéria-prima abundante à espera de quem explore, mas também porque há sempre mão de obra baratíssima em comparação a dos países ricos. Há casos até em que as condições são de tal maneira vantajosa que é de toda convivência transportar as fábricas inteiras para os países escolhidos como sede dos novos investimentos.
Chega então o momento da tentação à qual dificilmente as multinacionais resistem e para a qual Dom Helder chamou a atenção nesse Fórum Europeu de Chefes de Empresas: é a tentação de facilitar a presença de governos fortes, de ditaduras que favoreçam a elas, multinacionais e há um Congresso livre, pode ser que haja um perigo para elas, porque há alguns deputados que vivem contestando. Se há sindicatos livres, é outro perigo, ficam os líderes trabalhistas reclamando. Se há uma imprensa livre, é um perigo tremendo. Quanto menos liberdade existe, maior é o clima de paraíso para as multinacionais.
Os chefes de empresas europeus ouviram calados. Mas, no fim, um deles levantou-se e disse, em nome de seus companheiros, que estavam muito satisfeitos de que Dom Helder tivesse aceito o convite e até de ouvir o que tinham ouvido, pois achavam grande prova de sinceridade do arcebispo o fato de ir dizer-lhes aquilo dentro daquela assembléia, em vez de só dizê-lo lá fora. E que com aquela palavra franca eles poderiam até mesmo, a partir de então, analisar o caso de todos os ângulos e assim contribuir para a solução de problemas humanos, como julgavam, aliás, que era a intenção de um pastor de homens. Depois de dizer isso, manifestou uma curiosidade específica com as seguintes palavras:
– Não sei se o senhor poderá satisfazer uma única curiosidade que me fica. Quando o senhor fala com o papa, o senhor fala com a mesma franqueza, eu diria até com a mesma coragem com que fala aqui aos chefes de empresas? O senhor, por exemplo, teve oportunidade de lembrar ao Santo Padre que uma das maiores multinacionais é a Igreja Católica Apostólica Romana?
Dom Helder manteve o diálogo com igual elegância:
– Quero lhe dizer que sim. É com essa mesma confiança, com essa mesma franqueza que falo ao Santo Padre. Claro que sem a mínima pretensão de ser mestre de Jerusalém, sem nenhuma pretensão de ser crítico da Santa Igreja e muito menos crítico do papa, mas tenho sempre a confiança de abrir meu coração, dizer todo o meu pensamento.
CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 200-201-202.
*O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros ‘Dom Helder Camara um modelo de esperança’, ‘Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo’, ‘Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire’ e o DVD ‘ Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro ‘Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza’. Contato profcondini@gmail.com
2 comentários sobre “Causos do Dom: Um Bispo em Davos”
O dom sempre coerente.
Simplicidade contundente e cristalina por onde o mundo subvertia valores humanos na exploração de mão de obra barata em lugares onde coubesse seus negócios sob proteção de regimes de exceção. Alguns magnatas sem alcance do que significasse desenvolvimento e prosperidade, brutalidade sofisticada por especulação num desprezo comum em seu meio pela vida dos mais pobres. A ordem do dia cerceamento da liberdade, subtração de direitos tais, prover subsistência, saúde, carga horária remunerada, trazida até nossos dias com a desfaçatez cafajeste da IMPOSIÇÃO A FERRO E FOGO, DESEMPREGO EM MASSA, alternativas utilizadas aterrorizantes e consensuais entre grupos empresariais e governos corruptos contra sua gente abandonada à própria sorte. O Dom da Vida Dom Helder Câmara coragem e desprendimento com isenção na busca por reconhecimento de tantas injustiças espalhadas pelo mundo. Que viva a vida, dignidade e respeito pelo seu semelhante. Viva Dom Helder sempre em nossos corações.