Um Olhar Sobre a Cidade: o Gosto Amargo da Cana – Crônica

UM OLHAR SOBRE A CIDADE: O GOSTO AMARGO DA CANA

No dia mundial do Trabalhador, uma crônica de Dom Helder Camara, que expressa a sua solidariedade aos trabalhadores, uma classe sofrida desde sempre.

Segunda-feira, 8.10.1979
Meus queridos amigos


Faço inteiramente minha a nota que a Comissão de Justiça e Paz da nossa Arquidiocese de Olinda e Recife distribuiu a imprensa e que faço questão de ler aqui:
“Vencidos pela fome, 15 mil trabalhadores de dois municípios da zona canavieira estão parados desde terça-feira, 2 de outubro.
Vencidos pela miséria, outros 240 mil ameaçam cruzar os braços na próxima semana, na primeira grande paralisação no campo, nos últimos 15 anos.
Dói-nos constatar, neste momento, que homens tão humildes arrostam tão ingentes perigos e incompreensões de empregadores e governos, apenas para conseguir direitos que, na maioria, as leis dos próprios governos revolucionários já reconhecem. Dói-nos sentir que, no último quartel do século 20, trabalhadores brasileiros tenham que se valer do recurso heroico da greve, para conseguir direitos trabalhistas tão elementares como a assinatura da carteira profissional no ato da admissão, o fim das jornadas semanais de trabalho ao meio-dia do sábado, o fornecimento de equipamentos de trabalho ou até mesmo a simples descrição nos envelopes de pagamento, dos créditos e descontos efetuados. Os dois hectares de terra que reivindicam para suas roças, até isto já está garantido pela lei, impunemente descumprida até aqui.
Estranha, dolorosa situação esta que, para cumprir a lei, precisa se recorrer a greve. Vergonhosa situação esta em que aumentos de salários são de pronto, e impunemente, compensados com aumentos de tarefa.
Não nos convencem as insistentes alegativas patronais de que vivem deficitários pelos preços antieconômicos da cana. Como acreditar em prejuízos seguidos, se nenhum deles se dispõe a mudar de atividade? E todos, coesos, impedem a reorientação da economia da Zona da Mata, há anos reclamada por técnicos de órgãos tão insuspeitos como a Sudene e o Banco Mundial?
Clama aos céus a miséria dos 400 mil trabalhadores da zona da cana. Oitenta por cento deles ganham salário-mínimo, e têm de ficar desempregados os três ou quatro meses da entressafra. Eles comem, em média, 1.299 calorias por dia, menos da metade do que se recomenda para um homem normal. Suas mulheres já medem menos de 1,50m. Seus homens mal atingem 1,60m. De duas crianças, 60% morrem de fome e desnutrição antes dos cinco anos de idade. As que escapam carregam lesões irreversíveis no cérebro, provocadas pela má alimentação. Formam eles gerações de nanicos e debiloides, denunciadas por órgãos de pesquisa do próprio Governo Federal.
Até quando assistiremos, omissos ao desrespeito absurdo da própria
lei? Até quando testemunharemos impassíveis o extermínio lento, mas seguro, de quase meio milhão de trabalhadores? Nossa consciência de cidadãos e de cristãos força-nos a engrossar o clamor dos trabalhadores da Zona da Mata. Mais que simples reivindicações econômicas, eles pedem apenas que se cumpra a lei, e se respeite o seu direito a vida.”

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