Memória em Palavras:Dom de Ser o Dom
Prof. Dr. Martinho Condini
[Este artigo foi escrito para ser publicado pela primeira vez na revista eletrônica Ciberteologia da Edições Paulinas]
Introdução
Neste artigo apresento às novas gerações, um dos mais importantes protagonistas da história da Igreja no Brasil e na América Latina no século XX, Dom Helder Camara, arcebispo emérito de Olinda e Recife. Enfatizarei algumas passagens importantes de sua vida e destacarei a sua maneira de pensar e agir, na Igreja e nos movimentos sociais. É importante destacar que a sua postura propositiva, a qual seus oponentes denominavam de rebeldia e subversão, foi relevante para o catolicismo brasileiro, latino americano e para os grupos excluídos e discriminados da nossa sociedade. O homem, o padre, o bispo e o cidadão do mundo Dom Helder Camara levou sempre consigo o otimismo e a esperança como instrumentos para a transformação da sociedade.
Durante sua vida, passou por diferentes fases, e como ele mesmo dizia, “feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo”. Desde a sua formação como padre até sua aposentadoria como Arcebispo Emérito de Olinda e Recife, não foi um mero observador dos acontecimentos, muito pelo contrário, foi alguém que, no seu espaço e em sua época, pensou, agiu, atuou de tal maneira que fez história. Ele viveu num período no qual ocorreram transformações profundas na sociedade e no mundo: as relações econômicas e políticas, o desenvolvimento industrial e tecnológico, as novas idéias advindas do homem da sociedade industrializada. Todos esses fatores, de maneira direta ou indireta, interferiram em sua formação e comportamento, como religioso e cidadão.
Em nenhum momento teve medo de viver e enfrentar as dificuldades, que não foram poucas; sempre defendeu com argumentos profundos e sensatos os seus pontos de vista e a sua maneira de entender o mundo. Mesmo discordando de seus opositores, tinha a sensibilidade de reconhecê-los e respeitá-los, pois não via neles inimigos, mas sim irmãos que divergiam no campo das ideias. Sua retidão ética foi uma marca indelével em suas atitudes com as pessoas que com ele convivera.
Ao participar de conferências, nacionais ou internacionais, ou em seus encontros nas Comunidades Eclesiais de Base, com as populações urbanas ou com os camponeses no sertão nordestino, o tom de Dom Helder Camara era único: era o tom da ética e da esperança, onde prevalecia a incansável batalha por aqueles que “não têm vez e não têm voz”. Por quantas vezes ele se pronunciou e discursou a favor desses e, mais importante, agiu e praticou ações que dessem a esses, melhores condições e oportunidades de vida.
Foram muitos os enfrentamentos: com o clero, com os militares, com os países imperialistas que exploravam e exploram de maneira austera e desumana as populações dos países do Terceiro Mundo, hoje denominados países emergentes. Sua postura diante dessas situações foi sempre marcada por aquilo que caracterizou Dom Helder Camara em toda a sua vida: a ética, o otimismo e a esperança. Ele contagiava as pessoas com o seu otimismo. Por mais difícil ou complicado que estivesse o contexto, ele sempre acreditava que haveria possibilidade de melhora. A sua esperança, não era do verbo esperar, mas do verbo esperançar, o que fez dele um opositor contumaz das injustiças sociais e da exploração das camadas menos favorecidas da sociedade, chamada por ele de pequeninos e incansável defensor dos direitos humanos.
Para Dom Helder Camara, a paz, a justiça social e os direitos humanos foram bandeiras e compromissos não só do religioso, mas também do homem que, não só estava comprometido com sua religião, mas também com o seu povo. Lutou diuturnamente na construção de um mundo no qual mulheres e homens pudessem viver com mais dignidade.
A sua trajetória como religioso, foi profética, sempre à frente de boa parte dos seus companheiros, quando se tratava da renovação da Igreja. Ele teve, ao longo de sua vida religiosa, sensibilidade para perceber as mudanças do mundo e, em decorrência disso, teve a perspicácia de rever valores, refletir e propor mudanças na Igreja. O “pensamento helderiano” não pode ser entendido se não se levar em conta o processo de transformação por qual ele passou em sua caminhada.
No Concílio Vaticano II e nas Assembléias episcopais de Medellín, Puebla e Santo Domingo ele sempre foi uma referência. Mostrou nesses encontros a sua habilidade e visão profética da necessidade da construção de uma nova Igreja, uma Igreja voltada para os pobres e os excluídos da sociedade: a “Igreja dos Pobres”.
Dom Helder Camara exerceu um papel de fundamental importância para o povo e para a Igreja e, através de suas ideias e atitudes, construiu um modelo de esperança que se tornou referência para gerações que acreditavam e acreditam no diálogo, na paz e na justiça social como condição sine qua non para a melhoria das condições de vida das populações mais carentes ou excluídas da nossa sociedade.
1. Helder e o Ceará
Se eu pudesse, daria um globo terrestre a cada criança…
Se possível, até um globo luminoso,
Na esperança de alargar ao máximo a visão infantil
E de ir despertando interesse e amor por todos os povos,
Todas as raças, todas as línguas, todas as religiões
(BULLA; CONDINI. 2019) (Dom Helder Camara)
O garoto Helder e seus irmãos passaram a infância numa casa com quintal a perder de vista, com muitas árvores frutíferas, pródigas em sombra e frutos, onde também passava o córrego Pageú, no qual eles adoravam se refrescar do intenso calor cearense da cidade de Fortaleza.
Uma das diversões prediletas de Helder era brincar de ser padre. Ele montava um altar com caixotes de madeira, subia em um deles e fazia seus sermões imaginários para as árvores e os pássaros.
Durante a sua infância, Helder tornou-se aspirante da Conferência de São Vicente de Paulo, sua primeira ação social. Visitava famílias carentes para prestar-lhes ajuda. A poucos metros de sua casa, encontrava-se a Igreja da Sé, onde fez a primeira comunhão e, mais tarde, ordenou-se e celebrou a primeira missa.
O pai de Helder, quando notou o interesse do menino pelo sacerdócio, lhe disse: “Para ser padre não pode ser egoísta. Os padres acreditam que quando celebram a eucaristia é o próprio Cristo que está presente”. Helder, então com nove anos de idade, decidiu imediatamente: “Pai, é um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”.
No ano de 1923, ingressou no Seminário dos Padres Lazaristas, franceses e holandeses, que possibilitou a ele uma formação cultural erudita; mesmo assim, jamais deixou de valorizar a cultura nordestina e de se preocupar com as condições desfavoráveis do seu povo.
Ordenou-se no ano de 1931, aos 22 anos de idade, dois abaixo do mínimo exigido pelo direito canônico, o que implicou uma autorização especial do Vaticano. Nos cinco primeiros anos de sua vida sacerdotal, dedicou-se à educação católica e aos círculos operários, com uma intensa atividade junto aos jovens e às mulheres que trabalhavam de empregadas domésticas.
2. O homem
Se o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883)
Tivesse visto em volta de si uma Igreja encarnada, continuadora da encarnação de Cristo; se tivesse convivido com cristãos que amassem, com atos e de verdade, os homens como expressão, por excelência, do amor a Deus; se tivesse vivido em dias do Vaticano II, que assumiu o que de melhor diz e ensina a teologia das realidades terrestres, não teria apresentado a religião como ópio para o povo, e a Igreja como alienada e alienante. (CAMARA. 1966. p.2)
Embora pequenino quanto à estatura física, Dom Helder Camara foi um gigante na bondade, no carisma, na perseverança, na coragem e na esperança. Foi um religioso, um místico, um profeta e um guerreiro. Um guerreiro, sem que tenha ferido quaisquer que fossem seus adversários, apenas no “campo das ideias”.
Ele foi um dos principais protagonistas da história da Igreja no Brasil e na América Latina no século XX, bem como um incansável lutador contrário às injustiças sociais, uma referência mundial em defesa dos direitos humanos e um dos mais perseguidos opositores dos vinte e um anos de Ditadura Militar no Brasil.
Desde a sua ordenação no ano de 1922, em Fortaleza, até o final do seu bispado, em 1985, como arcebispo de Olinda e Recife, podemos considerar polêmica a sua postura política e religiosa, diante do contexto histórico e social de cada época. Na década de 1930, foi integralista; nas décadas de 1940 e 1950, chamavam-no de populista; e nas décadas de 1960 a 1980, foi identificado como comunista ou bispo vermelho.
Certa vez ele declarou: “se dou comida aos pobres, eles me chamam de santo. Se pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista”.
Dom Helder Camara viveu as mais profundas transformações na sociedade e no mundo – as relações econômicas e políticas, o desenvolvimento industrial e tecnológico e todo burburinho das novas ideias de uma sociedade industrializada – sem que se afastasse do verdadeiro significado do ser humano.
O medo era um vocábulo não existente em suas pregações, conferências e escritos, pois vivia intensamente o enfrentamento e as dificuldades encontradas pela vida. Sempre tinha, prontamente, os mais argutos, profundos e sensatos argumentos ao defender os seus pontos de vista e a sua maneira de ver o mundo. Ainda que discordasse de seus opositores, era senhor de grande sensibilidade em respeitá-los e reconhecê-los.
Certa vez, em plena Ditadura Militar no Brasil, ligaram para Dom Helder Camara, em sua casa na Igreja das Fronteiras, em Recife e perguntaram como ele queria morrer: enforcado ou esquartejado? Prontamente, ele respondeu “quero ser esquartejado e que partes do meu corpo sejam espalhadas pela cidade de Recife”. Ele dizia que nos momentos difíceis não podíamos demonstrar que estávamos com medo, mesmo que estivéssemos.
Essa coragem e serenidade vinham da sua esperança, a qual transmitia e, ao mesmo tempo, contagiava as pessoas com a mesma intensidade e otimismo que carregava dentro de si.
Ao se pronunciar ao mundo, nas requintadas salas governamentais, nas reuniões com os cardeais e papas e nas universidades – entre alunos e professores – ou nas Comunidades Eclesiais de Base, com o povo de Deus, Dom Helder Camara dava o tom da esperança. Das virtudes demonstradas por ele, destacamos a sua capacidade de ouvir, refletir e agir, sempre no limite do provisório.
Foi o idealizador e criador da CNBB e, posteriormente, do CELAM. Teve participação significativa nos bastidores do Concílio Vaticano II, sendo um dos proponentes do Pacto das Catacumbas, em que 42 sacerdotes de todo o mundo se comprometeram a assumir atitudes com o objetivo de reduzir a pobreza global.
O documento é considerado o embrião da Teologia da Libertação, corrente cristã que determina assumir “a opção preferencial pelos pobres”, principalmente na Igreja católica da América Latina, que por meio da Conferência Espiscopal Latino Americana de Medellín, consolida esse processo, tendo Dom Helder Camara uma das principais lideranças.
3. A transformação ideológica e a construção de uma ordem social cristã
Desde muito cedo, padre Helder se fez presente de maneira marcante e combativa nos meios de comunicação social. Teve intensa e importante participação na organização do movimento Juventude Operária Católica (JOC). Ainda em Fortaleza, assumiu funções de assistente eclesiástico da Liga dos Professores Católicos e de professor de religião do Liceu do Ceará.
O interesse pela política o levou a ingressar na Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento político de inspiração nazi-fascista que deu apoio ao Golpe de Estado de Getúlio Vargas e posteriormente à instauração do Estado Novo. Permaneceu entre os partidários de Plínio Salgado de 1932 a 1936.
O jovem padre Helder sofreu forte influência do líder católico e integralista Alceu Amoroso Lima, para quem o autoritarismo e o conservadorismo eram formas de atuação da Igreja capazes de defendê-la do comunismo ateu e “apátrida”. Anos mais tarde, já como arcebispo, ele justificaria a sua opção pelos integralistas exatamente por esse motivo.
No decorrer dos anos de 1930, no entanto, padre Helder já percebia que as concepções autoritárias e conservadoras do catolicismo, herdadas do seminário, estavam “fora de lugar”. Soma-se a isso a desilusão com o movimento integralista, considerado de extrema-direita. Ao fim da década de 1930 se auto definia como humanista integral e democrata cristão.
Ainda como padre, teve papel importante durante a Segunda Guerra Mundial. Fundou a Comissão Católica Nacional de Imigração e trabalhou para acolher refugiados que chegavam ao país.
A partir daí, há um profundo processo de transformação ideológica que marcou o início de sua conversão à democracia e à construção de uma nova Igreja, dedicada às questões sociais e aberta à participação dos leigos.
Faz parte dessa guinada a descoberta do ideário do filósofo francês Jaques Maritain, apresentadas a ele pelo então ex-integralista Alceu Amoroso Lima. A obra Humanismo integral e Cristianismo e democracia foi o grande divisor de águas em sua vida. De maneira paulatina, padre Helder incorporou ao seu cotidiano as propostas de Maritain, baseados num novo estilo de santidade caracterizado pela penitência, a simplicidade e a pobreza, criando, assim, uma nova ordem social cristã.
4. Uma liderança da Igreja e dos movimentos sociais
No ano de 1936, padre Helder chega à cidade do Rio de Janeiro. Lá, iniciou seu trabalho de pregação para grupos de jovens, reunidos em paróquias ou em retiros espirituais organizados pela Ação Católica Brasileira (ACB), movimento controlado pela hierarquia e fundado pelo cardeal Sebastião Leme da Silveira Cintra, em 1935. A platéia militante, no vigor da juventude, encontrava no padre Helder, de retórica vibrante, possibilidades de um diálogo envolvente sobre questões complexas e polêmicas da Igreja brasileira.
Não por acaso, portanto, no ano de 1942 ele foi convidado a lecionar nas Faculdades Católicas, que logo se transformariam na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Sua carreira eclesiástica, ao mesmo tempo, ganhava novos contornos. Em 1946, já em plena fase de redemocratização do Brasil, padre Helder era cogitado a se tornar bispo auxiliar do recém-nomeado arcebispo do Rio de Janeiro, dom Jaime Câmara.
Nesse mesmo ano, organizou a Semana Nacional de Ação Católica, com o objetivo de discutir problemas que escapavam ao controle da cúpula da Igreja. Em abril de 1952 foi sagrado bispo e atuou de maneira decisiva para a criação da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Ele acreditava que as distâncias do território nacional dispersavam a ação do episcopado e isso poderia comprometer o futuro da Igreja Católica no Brasil.
Dom Helder Camara achava necessário, portanto, criar um secretariado nos moldes da Ação Católica Brasileira, para poder estudar, analisar e discutir tanto questões religiosas como temporais, que ultrapassavam o limite das dioceses. Entendia que isso os ajudaria a tomar decisões e a atuar de maneira coesa, além de facilitar o diálogo com o Estado, pois daria um peso maior aos porta-vozes da Igreja.
O bispo Helder preocupou-se em criar uma base sólida para a CNBB, com a realização de encontros regionais e a participação nos programas sociais elaborados pelo governo. Entre os motivos que o levaram a idealizar a entidade, estavam: a necessidade de uma coordenação nacional da Igreja para a expansão e a formação de novas dioceses; e, também, a necessidade de participação intensa nas questões políticas e sociais que envolviam a nação brasileira. Com esses argumentos, cruzou o Brasil, para defender a ideia, apresentada também ao Vaticano.
5. A CNBB e a causa dos excluídos
Em 14 de outubro de 1952, a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil era uma realidade. A partir daí, começou a ser construída uma nova história da Igreja no Brasil. O bispo Helder tornou-se secretário-geral da entidade por três mandatos consecutivos (1952 a 1964), o que o tornou uma das principais lideranças do catolicismo também na América Latina.
Na qualidade de secretário-geral da CNBB, participou da organização do Congresso Eucarístico Internacional, realizado no Rio de Janeiro, no ano de 1955. O evento colaborou para uma mudança na condução da vida religiosa do bispo, principalmente após um encontro com o cardeal francês da cidade de Lyon, Pierre Gerlier, que o indagou por que o bispo Helder não utilizava toda a sua inteligência, sua competência e liderança a serviço dos pobres do Rio de Janeiro.
Dom Helder profundamente inspirado pela questão, se comprometeu a dedicar todos os dias de sua vida à causa dos excluídos, decisão que lhe valeu o título de “Bispo das Favelas”. Desenvolveu um ousado projeto na tentativa de erradicar as favelas, denominado “Cruzada São Sebastião”, em homenagem ao padroeiro da cidade do Rio de Janeiro – à época, capital do Brasil. A intenção era transferir os moradores desses aglomerados precários para prédios de apartamentos em plena zona sul.
Assim, Dom Helder Camara pretendia superar a luta de classes, colocando os pobres perto dos ricos e as empregadas e os empregados próximos ao seu trabalho. Estava evidente, para ele, que tal ação não resolveria o problema de moradia no Rio de Janeiro.
É importante salientar que esse conjunto habitacional idealizado e construído a partir da iniciativa dele, existe até hoje, e os moradores tem muita gratidão por Dom Helder Camara, apesar de muitos apenas terem ouvido falar dele por meio das histórias que seus pais ou avós contaram sobre o bispo.
Ele admitia publicamente que era necessário mexer com as estruturas, acabar com o êxodo rural e implantar políticas agrárias voltadas para a redistribuição de terras.
Não foi a “Cruzada São Sebastião” a sua única incursão em favor dos despossuídos, empenhado que estava em construir esperanças. Dom Helder Camara criou, no ano de 1955, o Banco da Providência – primeira experiência brasileira de um banco popular. A instituição centralizaria a captação de recursos de quem tivesse excedente, para distribuí-los aos necessitados e a entidades filantrópicas. A mensagem da campanha para a arrecadação de donativos era: “Ninguém é tão pobre que não tenha o que oferecer. Ninguém é tão rico que não precise de ajuda” (CONDINI, 2013,p.29). Foi um sucesso, em grande parte creditado ao carisma do religioso junto ao empresariado fluminense.
6. O Golpe Militar e a chegada a Recife
O bispo Helder, no entanto, não continuaria no Rio de Janeiro por muito tempo. Depois do golpe militar que depôs João Goulart, no ano de 1964, Dom Helder Camara assumiu a arquidiocese de Olinda e Recife. A mudança não foi ocasional. Teve, sim, o propósito de tentar silenciá-lo.
Ele era uma voz da resistência contra o autoritarismo. Poderia incomodar demais, caso permanecesse na antiga Capital Federal. A providência, porém, produziu efeito contrário. Ao livrar-se da influência do conservador cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, que não gostava da postura política do seu bispo auxiliar, adquiriu autonomia para alçar vôos mais arrojados.
No dia 11 de abril de 1964, agora arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Camara fez seu discurso de posse, para milhares de pessoas que se acotovelavam em frente à matriz de Santo Antônio. O recém-empossado reiterou a intenção de trabalhar para os cidadãos, sem discriminação de credo e ideologia.
7. Entre a cruz e a espada
Dom Helder Camara manteve, a princípio, uma posição de neutralidade – nem situação, nem oposição – diante dos militares que haviam tomado o poder. Com essa atitude, ampliou as possibilidades de dialogar com todos os grupos, mas sua imparcialidade durou pouco.
No trabalho na Diocese de Olinda e Recife, não tardou a entrar em choque com o poder. Logo se pôs a indagar ao Exército sobre a violação dos direitos humanos por práticas de perseguição e tortura aos opositores do regime. O governo reagiu com uma permanente atenção aos movimentos do prelado: seus documentos eram revistados; seus discursos, suas entrevistas e seus depoimentos, ouvidos e censurados. Sem se intimidar, ele prosseguiu seu trabalho em prol dos perseguidos e excluídos.
À semelhança das iniciativas que liderava no Rio de Janeiro, Dom Helder Camara criou, em Recife, um projeto de ajuda às vítimas das enchentes que ocorreram no ano de 1965. Dessa ampla campanha nasceu a “Operação Esperança”, que se transformou numa entidade registrada em cartório. Com o passar do tempo, a entidade ampliou a atuação para as áreas rurais.
Graças a esse trabalho, a Arquidiocese de Olinda e Recife se tornou conhecida no mundo inteiro. Isso foi, ao mesmo tempo, uma espécie de proteção contra as investidas da Ditadura na seara plantada pelo bispo, como também uma ferramenta importante para que o povo do Nordeste passasse a reivindicar seus direitos.
Esse trabalho de conscientização prosseguiu ao longo de 20 anos, sempre sob a mira da Ditadura. Haveria um acirrado confronto entre os militares e a Igreja, que contava com outras lideranças tão ativas como Dom Helder Camara, em razão de discordâncias ideológicas e de valores éticos e morais. Isso implicava ameaças, perseguição política e patrulhamento ideológico. O bispo de Recife e Olinda não arredou pé de suas convicções.
8. Cala boca: Arcebispo Vermelho!
Embora houvesse proibição à mídia de repercutir suas ações, ele continuava a ampliar a sua notoriedade, até porque era uma referência naquele período de silêncio forçado da sociedade. O confronto com os militares dava-se no diálogo, no campo das ideias, no processo de conscientização e na pregação da paz. Essas foram suas armas.
Ele foi perseguido, também, por que se recusava a participar das comemorações de aniversário da chamada “Revolução” (que era como os militares chamavam o Golpe), entre outros eventos para os quais o regime buscava respaldo nas lideranças da sociedade.
Em carta a amigos, escrita em Recife, em 1967, relatou que fora procurado pelo general do IVº Exército, que vinha com um “apelo de amigo” para que ele celebrasse a missa de terceiro aniversário da “Revolução”. Sua resposta:
Fui amavelmente firme. Intransigente. Sou pastor. Se tenho filhos que vêem no movimento de 31 de março de 1964 a salvação nacional, tenho outros, não menos numerosos, feridos, esmagados, de maneira injusta, por ele. Nem sequer neguei o meu próprio pensamento: o movimento não merece ainda o nome de revolução; impediu, em grande parte, a arrancada do desenvolvimento, pelo bom pretexto de sanear nossa moeda; sacrificou demais o povo; humilhou demais o Brasil diante dos Estados Unidos (CONDINI, 2013, p.54).
O diálogo com os militares ficou ainda mais difícil após a decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. O cerco às ações do arcebispo foi intensificado. Pior: sua vida já corria perigo. Antes mesmo do AI-5, no final de outubro de 1968, as paredes da Igreja das Fronteiras, onde morava Dom Helder Camara, foram metralhadas pelo grupo de direita CCC – Comando de Caça aos Comunistas.
Durante o governo do general Emílio Garrastazú Médici (1969-1973), a repressão aos opositores do regime foi intensificada, da mesma forma que as represálias ao arcebispo. Ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. O patrulhamento acentuado estendeu-se até o ano de 1977. Nesse período, seus textos, seus discursos, suas entrevistas e seus depoimentos passaram a ser censurados pelo Ministério da Justiça, com proibição a qualquer espaço na mídia.
O “cala-boca” valia, obviamente, só para o território nacional, de maneira que jornais, revistas e cadeias de rádio e televisão do mundo inteiro abriam espaço à palavra daquele que a Ditadura Militar chamava de “arcebispo vermelho”.
Nos anos 1970, ele fez centenas de pronunciamentos no exterior. Era, também, chamado a fazer palestras e conferências. Uma, em especial, teve muita repercussão, a de maio de 1970 em Paris, no Palácio dos Esportes. Ele denunciou a repressão, as prisões e as torturas que aconteciam no Brasil. O discurso lhe valeu algo que pode ser classificado de “morte civil”, tamanho o cinturão de silêncio imposto à sua pessoa.
A retaliação psicológica e moral foi tamanha que o Governo Militar engendrou um boicote para que ele não fosse agraciado com o prêmio Nobel da Paz, nos primeiros quatro anos da década de 1970. Ele era sempre indicado por uma série de fatores: sua atuação nos bastidores do Concílio Vaticano II (1962-1965) e na II Conferência do Episcopado Latino-Americano em Medellín (1968), sua constante mensagem de não violência na América Latina, sua liderança no seio da chamada “Igreja progressista” na luta por melhores condições de vida, por respeito aos direitos humanos e pela defesa da solidariedade entre as nações, independentemente de suas condições econômicas.
A lei do silêncio contra o arcebispo só acabou em 1977. Em entrevista à jornalista Divane Carvalho, do Jornal do Brasil, sucursal Recife, Dom Helder Camra falou sobre seu envolvimento com a Ação Integralista Brasileira, o enfrentamento com os militares pós-64 e a situação da Igreja latino-americana. Em seguida, outros importantes órgãos de comunicação do país o procuraram.
Do final dos anos 1970 até o início de 1984, quando do envio da carta de dom Helder Camara a João Paulo II, que formalizava sua renúncia da Arquidiocese de Olinda e Recife, conforme estava previsto no Código do Direito Canônico, o arcebispo participou ativamente da vida religiosa, social e política do país. Esteve ligado às reflexões com os membros da Teologia da Libertação, esteve ligado à III Conferência do Episcopado Latino Americano, em Puebla, e à IV Conferência do Episcopado Latino Americano, em Santo Domingo.
Sua participação foi decisiva no que ele chamava de “evangelização conscientizadora”, colocada em prática por meio da criação das Comunidades Eclesiais de Base. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, elas se expandiram pelo Brasil e por outros países da América Latina. O objetivo das CEBs era promover a humanização por meio da religiosidade e contribuir para a libertação social das camadas populares.
Participou do processo de redemocratização do país e foi voz importante nos comícios que marcaram a campanha das Diretas-Já, no ano de 1984.
9. Dom Helder, o santo rebelde
O processo de beatificação e canonização para alguém se tornar santo pela Igreja Católica só pode ter início após a morte do candidato e deve cumprir algumas etapas: confirmação das virtudes heróicas (em fases diocesana e romana); beatificação e canonização. Para as duas últimas, é necessário a comprovação de milagres. Os passos desse processo são constituídos das seguintes etapas:
Abertura do processo
Qualquer pessoa física ou jurídica pode solicitar a abertura do processo de beatificação e canonização ao bispo do local em que o candidato a santo morreu. Para cada causa, é escolhido pelo bispo um postulador, que investiga a vida do candidato para conhecer sua fama de santidade. Quando se inicia o Processo, depois de ter recebido a autorização da Santa Sé, o candidato torna-se \”Servo de Deus\”.
Investigação das virtudes
Após recolher dossiê sobre o candidato, o bispo local dá entrada com a documentação na Congregação para as Causas dos Santos, no Vaticano, onde começam a investigação das virtudes. O objetivo é passar ileso pela análise de comportamento durante a vida. Se o candidato viveu de forma exemplar, é declarado venerável. No caso de martírio, aqueles que morrem por causa da fé, a morte do candidato é analisada para comprovação.
Exigência de um milagre
Para seguir o Processo, a Congregação das Causas dos Santos exige que o candidato a santo tenha operado um milagre e que este seja comprovado. Uma investigação é aberta no local onde o milagre ocorreu e os resultados são enviados à Roma. Em caso de confirmação, o milagreiro é declarado \”Beato\” e pode ser cultuado na região em que já tem fama de santidade. Mártires, por sua vez, são dispensados do milagre e seguem automaticamente para a canonização.
Prova de mais um milagre
Na última fase, é preciso provar outro milagre. Esse precisa ser a resposta de uma oração feita por um fiel ao candidato morto e não uma ação em vida. Vencida a etapa, o santo é apresentado pelo Papa para o culto da Igreja mundial. É necessário confirmar inclusive a real existência do candidato a santo. Para isso, uma exumação do corpo é solicitada.
Após dezesseis anos do falecimento de Dom Helder Camara o seu processo de canonização foi aberto em 2015. Desde então, frei Jociel Gomes – frade franciscano responsável por realizar o pedido da beatificação e canonização de Dom Helder Camara junto ao Vaticano – e sua equipe vasculharam a biografia do religioso e ouviram 54 pessoas que conviveram com ele. O resultado, enviado ao Vaticano em dezembro de 2019, foi um dossiê de 197 páginas. Pareceres da comissão teológica analisaram esses escritos de Dom Helder Camara para verificar se os mesmos estão de acordo com os ensinamentos da Igreja e do Santo Evangelho. Há informações sobre um possível milagre, mantido em sigilo pela Igreja, conforme as regras da Santa Sé.
A próxima etapa será o papa Francisco reconhecer, em nome da Igreja, que Dom
Helder Camara praticou em grau heróico as virtudes cristãs. Ai ele será declarado venerável. Uma vez considerado venerável, relatos de milagres passam a ser compilados. Os casos selecionados serão analisados por uma comissão de especialistas do Vaticano.
Para Dom Helder Camara se tornar beato, será preciso ter um primeiro milagre reconhecido pela Igreja. A canonização, ou seja, a condição de santo, só virá após um segundo milagre.
10. Considerações finais
Dom Helder aposentou-se no dia 15 de julho de 1985. Tornou-se arcebispo emérito e permaneceu em Recife, onde deu continuidade a seu trabalho social por meio da fundação Obras de Frei Francisco, que criara em 1984. Dessa maneira ele dá continuidade a sua incansável luta pela justiça e pela paz no mundo, principalmente no que era considerado terceiro mundo. Por meio dessa estrutura Dom Helder continua sua evangelização a favor dos menos favorecidos. Atualmente a Obra de Frei Francisco e o Instituto Dom Helder Camara (IDHeC) são os responsáveis pela continuidade do trabalho social com as camadas sociais carentes de Recife e pela organização do acervo de Dom Helder e sobre ele.
O arcebispo emérito de Olinda e Recife, Dom Helder Camara, faleceu em 27 de agosto de 1999, aos 90 anos de idade, em sua casa nos fundos da Igreja das Fronteira, em Recife, cercado de carinho e admiração. Seu corpo foi sepultado na catedral da Sé de Olinda.
Afirmo que um dos principais legados deixados por Dom Helder foi a capacidade de o Dom ser Dom Helder Camara, isso é caracterizado pela sua coerência entre o discurso e a prática. E como é difícil unir esses dois aspectos e fazer essa integração! Dom Helder conseguiu, durante a sua vida inteira, pensar, falar e agir conforme os seus princípios políticos, ideológicos, religiosos, éticos e morais. Um ser humano pleno em pensamento e atitude!
Para finalizar, estou convencido que seria de grande valia para todos nós tê-lo juntos de nós nesse momento tão cáustico em nosso contexto histórico, político e social.
Acredito que a sua lucidez ética nos daria alento para pensar não só o momento pelo qual estamos passando, mas possibilidades de engajamento afim de que pudéssemos possibilitar novos rumos para a resolução das injustiças sociais a qual ele tanto batalhou para serem extintas da nossa realidade.
Hoje, nos resta agradecer a sua existência, pelo exemplo de vida deixado por esse religioso que sempre esteve à frente do seu tempo. Acredito que a nossa missão seja semear às novas gerações o pensamento, os princípios e as atitudes desse homem e profeta Dom Helder Camara, a fim de colaborarmos para a construção de uma sociedade mais humana, justa e fraterna para todas e todos.
Bibliografia
ARAUJO, Edvaldo M. Dom Helder Camara: profeta-peregrino da justiça e da paz. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2012.
BULLA, Ilvana; CONDINI, Martinho. Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo. 1ª Reimpressão. São Paulo: Paulus. 2019.
CAMARA. Helder. Presença de Igreja no desenvolvimento da América Latina. Conferência na cidade de Buenos Aires em 1966.
CONDINI, Martinho. Dom Helder Camara: um modelo de esperança. 3ª Reimpressão. São Paulo: Paulus Editora. 2013.
CONDINI, Martinho. Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire. São Paulo: Paulus Editora. 2014.
RAMPON, Ivanir Antonio. O caminho espiritual de Dom Helder Camara.São Paulo: Paulinas, 2013. [Coleção Pesquisa Teológica]
RAMPON, Ivanir Antonio. Paulo VI e Dom Helder Camara: exemplo de uma amizade espiritual. São Paulo; Paulinas, 2014.
RAMPON, Ivanir Antonio. Francisco e Helder Sintonia espitiritual. São Paulo: Paulinas, 2016.
*Sobre o autor
É doutor pelo Programa Educação: currículo e mestre pelo Programa de Ciências da Religião ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e graduado em Estudos Sociais e História pela Universidade da Cidade de São Paulo. Realiza palestra e roda de conversa sobre temas relacionados à Educação, Ética, Cidadania e Direitos Humanos. Integra o grupo de pesquisa do CNPQ (O pensamento de Paulo Freire na educação brasileira), na linha de pesquisa (Pensamento de Paulo Freire – legado e reinvenção) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Leciona em cursos de graduação e pós-graduação. É editor assistente da Editora Diálogo Freireano, organiza coletâneas na área das ciências humanas.Publicou pela Paulus Editora os livros Dom Helder Camara um modelo de esperança, Helder Camara um nordestino cidadão do mundo, Fundamentos para uma educação liberadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire, e o DVD Educar para a liberdade:Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Pablo Editorial, Bogotá, Colômbia, Monsenhor Helder Camara: um ejemplo de esperanza. Publicou capítulos em livros editados pelo Instituto Paulo Freire e Editora Diálogo Freiriano. Contato: profcondini@gmail.com