Homilia na Vigília dos 50 anos
do martírio do Padre Antônio Henrique Pereira Neto
Recife, Igreja das Fronteiras, 27 de maio de 2019
Após a leitura do evangelho das bem-aventuranças (Mt 5, 1 –12).
Queridos irmãos e irmãs,
O assassinato do padre Henrique foi uma notícia tão pesada e dolorosa para a arquidiocese e para todas as pessoas de coração humano que, mesmo 50 anos depois, ainda nos comove. No entanto, se nos reunimos aqui hoje nessa vigília é porque o martírio de Henrique, além de ser uma notícia pesada, um verdadeiro pesadelo, como acabamos de cantar na música clássica do Maurício Tapajós, tem também o seu conteúdo de evangelho. Isso significa que, até de algo assim tão terrível, podemos escutar de Deus uma palavra de Deus nova e esperançosa. Agora, 50 anos depois, que palavra de Deus podemos escutar da memória desse martírio?
Podemos dizer que Henrique foi o primeiro mártir brasileiro desse modelo de Igreja em saída que Dom Helder e agora o papa Francisco propõem. Mas, também, sem dúvida, Henrique foi mártir do anti-esquerdismo e de uma política movida a ódio, que 50 anos depois, novamente se espalha pelo Brasil de hoje e que, no ano passado, foi responsável pelo martírio de Marielle e do Anderson, seu motorista. É responsável por vários assassinatos e martírios ocorridos como fruto do ódio e da intolerância contra a esquerda. É responsável pelo martírio lento e cruel de mais de 13 milhões de desempregados e das vítimas do desmonte da saúde e do que se projeta para a previdência em nosso país. A Teologia do Martírio distingue mártires ativos (os que dão a vida conscientemente pela causa do reino de Deus) e mártires passivos, as vítimas inocentes desse sistema que deve ser transformado.
Apesar do fato de que nunca esteve engajado em nenhum trabalho de cunho diretamente político e não era ligado a nenhum grupo político da época, Henrique pode ser considerado mártir ativo porque ele tinha consciência de que, ao celebrar no Recife a missa de memória do estudante Edson de Lima Souto, assassinado por militares no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, Henrique sabia que se expunha. Ao visitar estudantes torturados no Hospital da Polícia Militar, ele se expunha. Henrique era de esquerda por compreender que Deus não é de direita. Como nós sabemos, ele sabia que fazer política contra os pobres e ficar gritando Deus acima de todos é usar o nome de Deus em vão e criminosamente.
No tempo dos evangelhos, Lucas, que escreveu para comunidades pobres das periferias do mundo grego, afirmou que Deus abençoava as pessoas que tinham fome. As bem-aventuranças de Lucas significam bênçãos. Podem ser traduzidas por “abençoadas as pessoas”, “felizes”.
Mateus escreveu para comunidades de cultura judaica. E naquela cultura o problema fundamental era a honra. Ser pobre, ser marginal da sociedade era sinal de pecado e castigo de Deus. Era uma sociedade meritocrática e que associava Deus à riqueza e ao templo de Salomão. O pensamento era, mais ou menos, correspondente ao que hoje é a Teologia da Prosperidade. Por isso, as bem-aventuranças no evangelho de Mateus, têm como foco, não tanto a pobreza econômica e social, como em Lucas, mas a justiça como coração da fé e do projeto divino. Nesse evangelho, as pessoas bem-aventuradas são aquelas que não têm a sua dignidade e sua cidadania reconhecidas pelo mundo e Deus decreta que são cidadãs do seu reino mas não no céu depois da morte e sim aqui a partir de agora. Por isso, os bem-aventurados e bem-aventuradas de Deus, ou seja, essas pessoas que recebem sua dignidade de Deus são as que têm coração de pobre, as que choram, as que são promotoras da paz. São principalmente, as que têm fome e a sede de justiça. Essas pessoas certamente sofrem por causa da justiça, são perseguidas por causa da justiça. Por isso, recebem de Deus a confirmação de sua dignidade e de sua honra. Deus confirma que são os homens e mulheres prediletos do seu amor. Estou convencido de que, hoje, a palavra de Deus proclama como bem-aventurados e bem-aventuradas, vocês todos que estão aqui para viver a memória do martírio de Henrique e todas as pessoas, que, por esse Brasil afora, resistem à barbárie e decidem que ninguém larga a mão de ninguém.
Há 50 anos, (1969), Dom Helder Camara era honrado e reconhecido como justo por Deus. Não o era nem pela sociedade dominante que o considerava comunista, nem pela cúpula da Igreja oficial que o julgava mais político do que bispo, esquerdista e demagogo. Exatamente, em 1969, em uma de suas circulares, Dom Helder conta que teve de ir a Brasília e responder a uma espécie de Comissão de inquérito, presidida pelo Cardeal Agnello Rossi, na época, presidente da CNBB. Uma comissão para julgar o arcebispo de Olinda e Recife. Como se fosse um réu, diante de seus irmãos bispos, ele precisou explicar quem pagava as passagens aéreas, em suas viagens pelo mundo. Deixou claro que ele era amigo do padre Comblin, mas era capaz de ter ideias próprias e não seria justo acusa-lo de ser influenciado pelo padre Comblin. Por último que não era verdade que ele incitava os jovens à violência. (DOM HELDER CAMARA, Circulares Pós-conciliares, Recife, CEPE Editora, 2014; Ver 490ª Circular – escrita na noite de 20/ 02/ 69, Volume IV, tomo III, p. 83- 84).
Pois exatamente, na arquidiocese, o padre Henrique era o representante de Dom Helder nesse trabalho com a juventude. E, por isso, Henrique também não era assim tão bem visto por parte do próprio clero. Claro que o modo como ele apareceu assassinado comoveu todo mundo e no sepultamento estava presente a diocese quase inteira. No entanto, nas comemorações feitas pelos dez anos de sua morte, ainda no tempo em que Dom Helder era arcebispo, como na memória dos 30 e depois dos 40 anos de sua morte, não havia muitos padres da arquidiocese.
Seria ingenuidade pensar que, naquela época, era diferente e as coisas fossem mais fáceis do que agora. Sempre houve e há dificuldades. Recebemos de Jesus o encargo de testemunhar o reino de Deus, ou como diz o evangelho das bem-aventuranças, a fome e sede de justiça, bem além da religião. Esse é o núcleo da fé jesuânica. Por outro lado muitos cristãos e muitos padres preferem ficar mesmo com as doutrinas e ritos religiosos e aprisionam Deus nos templos de pedra e nas regras litúrgicas das Igrejas.
Há poucos dias, os bispos brasileiros, reunidos na CNBB publicaram uma excelente Mensagem ao Povo Brasileiro. Falaram claro e profeticamente contra a injustiça institucionalizada pelo governo atual. Nessa memória do martírio do padre Henrique, o que podemos pedir e esperar é que essa mensagem dos nossos pastores não seja apenas uma palavra para fora, uma mensagem para a imprensa, mas, de fato, chegue aos padres e às paróquias do país.
Há 50 anos, Dom Helder Camara e Dom Lamartine, seu auxiliar, também lidaram com essas dificuldades e essas divisões no modo de compreender o mandato do Evangelho, mas sempre tomaram posição e deixaram claro a opção de Jesus e das bem-aventuranças. Demos graças a Deus que, nesse momento, nossa Igreja em Olinda e Recife conta com pastores como Dom Fernando Saburido e seu auxiliar Dom Limacedo Antônio da Silva que, como se disse aqui nessa Vigília estão onde o povo está. Mas, mesmo assim, nessa arquidiocese de Dom Helder Camara que teve Henrique como mártir, quantos padres, quantos religiosos e religiosas, quantos grupos católicos se interessaram por ler essa mensagem mais recente da CNBB e por acolher a verdade ali expressa?
Mártires como Henrique foram perseguidos e assassinados, porque fizeram de sua fé essa fome e sede de justiça que o evangelho das bem-aventuranças anuncia. Essa deve ser nossa opção hoje e sempre. Não para morrer, mas como forma de viver e de atuar no mundo. Que o Espírito de Deus nos ilumine e conduza por esse caminho.
Marcelo Barros