525ª Circular – Carta Pós-Conciliar
Vigília da quarta-feira da Oitava de Pentecostes
Recife, 27/28.5.69
À querida Família Mecejanense
De repente, às 13h30 me chega o boato de que o Pe. Antônio Henrique [Pereira Neto] havia sido assassinado. Procura daqui, procura dali, ele foi identificado no Necrotério de Santo Amaro, onde dera entrada como cadáver desconhecido.
Estava com sinais de sevícias incríveis: três balas na cabeça, uma punhalada na garganta, sinais evidentes de que foi amarrado pelos braços e pelo pescoço, e arrastado…
28 anos de idade. Três anos e meio de sacerdote. Crime: trabalhar com estudantes e ser da linha do Arcebispo.
Coube-me procurar os velhos Pais e dar-lhe a notícia terrível.
No Necrotério – onde ficamos, até depois das 19h, quando o cadáver foi liberado pelos médicos legistas – vivi uma avant-première de minha própria morte. Burburinho na sala. Gente chegando de todos os cantos. A Imprensa escrita e falada teve ordem de ignorar o acontecimento. Mas demos avisos a todas as Paróquias, por telefone e recados pessoais.
Levei-o para a Matriz do Espinheiro. Escolhida sob medida, inclusive para causar impacto no meio independente. Na primeira Concelebração, às 21h, éramos mais de 40 sacerdotes e a Igreja, enorme, estava transbordante de jovens.
Dei uma tríplice palavra:
• palavra de fé, aos velhos Pais, esmagados de dor;
• palavra de esperança, aos jovens com quem ele trabalhava. Assumi o compromisso de que eles não ficariam órfãos;
• aos fiéis que enchiam o Templo – uma vez que a Imprensa escrita e falada tinha ordem para recusar até o aviso pago de falecimento – pedi que ajudassem a espalhar que as 9h haverá nova Concelebração, saindo o enterro, as 10h, para o Cemitério da Várzea, que é o Cemitério da Família.
Li, então, a nota, assinada pelo Governo Colegiado, nota que a Imprensa não divulgará, mas que nós tentaremos espalhar por toda a Cidade, pelo País e… pelo Mundo.
1. Cumprimos o pesaroso dever de comunicar o bárbaro trucidamento do Pe. Antônio Henrique Pereira Neto, cometido na noite de ontem, 26 do corrente, nesta cidade do Recife.
2. Com 28 anos de idade e 3 anos e meio de sacerdote, o Pe. Henrique dedicou a vida ao apostolado da juventude, trabalhando, sobretudo, com universitários.
Até às 22h30 de ontem, segundo o testemunho de um grupo de Casais, esteve reunido, em Parnamirim, com País e filhos, na tentativa, que lhe era tão cara, de aproximar as gerações.
3. O que há de particularmente grave no presente crime, além dos requintes de perversidade de que se revestiu (a vítima, entre outras sevícias, foi amarrada, enforcada, arrastada e recebeu três tiros na cabeça) é a certeza prática de que o atentado brutal se prende a uma série pré-estabelecida e objeto de ameaças e avisos.
4. Houve, primeiro, ameaças escritas em Edifícios, acompanhadas, por vezes, de disparos de armas de fogo. O Palácio de Manguinhos recebeu numerosas inscrições. O Giriquiti foi alvejado. A residência do Arcebispo, na Igreja das Fronteiras, alvejada e pichada.
5. Vieram, depois, ameaças telefônicas, com o anúncio de que já estavam escolhidas as próximas vítimas.
A primeira foi o estudante Cândido Pinto de Melo, quartanista de Engenharia, presidente da União de Estudantes de Pernambuco. Acha-se inutilizado, com a medula seccionada.
A segunda foi um jovem sacerdote, cujo crime exclusivo consistiu em exercer apostolado entre os estudantes.
6. Como cristãos e, a exemplo de Cristo e do proto-mártir São Estevam, pedimos a Deus perdão para os assassinos, repetindo a palavra do Mestre: “Eles não sabem o que fazem”.
Mas julgamo-nos no direito e no dever de erguer um clamor para que, ao menos, não prossiga o trabalho sinistro deste novo esquadrão de morte.
7. Que o holocausto do Pe. Antônio Henrique obtenha de Deus a graça da continuação do trabalho pelo qual doou a vida e a conversão de seus
algozes.
Recife, 27 de maio de 1969
† Dom Helder, Arcebispo de Olinda e Recife
† José Lamartine, Bispo Auxiliar e Vigário Geral
216 Dom Helder
Mons. Arnaldo Cabral, Vigário Episcopal
Mons. Isnaldo Fonseca, Vigário Episcopal
Mons. Ernanne Pinheiro, Vigário Episcopal
*
A enorme Assembleia cantou e rezou durante todo o Santo Sacrifício.
Quando irrompeu o “Prova de amor maior não há, do que doar a vida pelo irmão” ouviram-se soluços…
*
E aqui estamos de Vigília e de plantão. Há o temor de que pretendam obrigar-nos a um sepultamento precipitado e sem assistência. Em caso contrário, será uma apoteose: após a segunda concelebração, o enterro seguirá a pé, até o início da Avenida Caxangá.
*
O que a muitos parecia fantasia, de repente tornou-se claro para a Cidade inteira. Querem que eu me proteja; que não ande só, a noite; que não durma só. Quem disse que eu ando só? Quem disse que eu durmo só? Andam e dormem comigo o Pai, e o Filho e o Espírito Santo. Velam por mim a Mãe querida e José, o Amigo fiel… Nada acontece ou acontecerá por Acaso.
É graça, é privilégio viver a oitava bem aventurança!
Bênçãos saudosas
do Dom