OUTRAS PALAVRAS: O PASTOREIO DA CIDADE: NA IMITAÇÃO DE JESUS CRISTO[1]


Por João Ferreira Santos

Disse eu em uma de minhas aulas de teologia que o ministro religioso deve estar preparado para comportar-se como pastor da cidade e não simplesmente como pastor da igreja que o tem como pastor. Disse isso baseado na memória de Dom Helder Camara que, através de seu programa “Um olhar sobre a cidade”, se posicionava como pastor da cidade, acolhendo a todos que o procuravam. Pessoalmente, fui atendido por ele, como também o foram outras pessoas por mim indicadas, apesar de sermos de outra denominação religiosa.

        Vi em Dom Helder as características de um verdadeiro pastor, das quais, no escopo do presente texto, menciono apenas duas: acolhedor e aberto ao diálogo. Pessoas tristes, feridas, injustiçadas, vilipendiadas, angustiadas e vítimas em geral, diante do olhar fraterno e da meiga voz pastoral de Dom Helder, recobravam o ânimo, erguendo-se espiritual, psicológica e emocionalmente. Era parecido com Jesus no trato com as pessoas pobres e injustiçadas do seu tempo. Além disso, Dom Helder, com todo conhecimento teológico e filosófico que possuía, associado ao poder e ao prestígio que lhe conferia o título de Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese de Olinda e Recife, era um homem simples e humilde, aberto ao diálogo, dando a entender que queria aprender com as pessoas simples, sem se julgar superior a nenhuma delas. Era, de fato, um homem manso e humilde de coração, com quem muitas pessoas podiam aprender.

                                                    Esse assunto – Pastoreio da cidade: na imitação de Jesus Cristo  – associado à figura de Dom Helder Camara, veio a minha mente em função de algumas palestras que ouvi recentemente, no contexto de um evento religioso. Os respeitáveis palestrantes, infelizmente, pareciam munidos de um forte conteúdo solipsista, deixando transparecer a ideia de que o seu “eu” é a única fonte receptora e detentora da verdade divina, diante da qual, os demais seres humanos, necessariamente, hão de se tornar objetos manipuláveis, dentro de um alinhamento ideológico, a partir do qual, as pessoas são induzidas a dissolver sua própria vontade nas conveniências de uma elite dominante.

        Como se não bastasse o solipsismo, os discursos foram também marcados por idiossincrasias, dando a entender que a verdade da Bíblia há de ser concebida por todos, tal qual, o palestrante a concebe. Essa mentalidade fixista, em franco progresso no protestantismo hodierno, tende a conceber a Bíblia como um monobloco de verdades prontas, a serem aceitas e possuídas pelas pessoas, tendo como rótulo de garantia a vontade de poder do pregador dominante. Isso diminui a Bíblia, reduzindo o conhecimento da verdade à posse da verdade. Aos fariseus, que se julgavam possuidores da verdade de Deus, Jesus disse: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Libertará, sim, dessa estupidez de transformar a ignorância das pessoas em fonte de renda, em nome de Deus, como o faziam os fariseus do passado e muitos insistem em fazer hoje.

        Uma leitura saudável da Bíblia, atendendo às necessidades do pastor, na condição de pastor da cidade, há de interrogar a Bíblia à luz dos conhecimentos existentes e interrogar os conhecimentos existentes à luz da Bíblia. Trata-se de uma leitura interativa, diante da qual, a Bíblia interage com o mito, com a cultura, com as religiões, com a teologia, com a filosofia, com a ciência e com a tecnologia, sem ter o que temer, pois tudo o que é possível ao homem conhecer, pode se tornar instrumento pedagógico na comunicação da Revelação de Deus, através do testemunho do Evangelho.

        Portanto, vamos procurar seguir o exemplo de Jesus, que sendo rico se fez pobre, por amor da humanidade, incluindo todos nós. Lembremos do monge medieval, Thomas de Kempis, no livro “A imitação de Cristo”, no qual, reconhece  que a imitação de Cristo combina com o desprezo das vaidades deste mundo, especialmente, as que procedem da riqueza, dos títulos, da fama e do poder. Imitar a Cristo pede um humilde juízo sobre si mesmo, associado a um olhar piedoso sobre os outros. Isso é possível a quem busca a verdade e impossível a quem se acha dono da verdade. Quem busca a verdade tem condição de dialogar, pois o diálogo só existe entre pessoas desejosas de aprender. Que possamos dialogar com a cidade, a fim de pastoreá-la, pregando a graça e a misericórdia de Deus, no lugar do insulto e da condenação, que afasta as pessoas pelo ódio, no lugar de uni-las pelo amor, que se constitui a base da fraternidade humana.  

[1] Por João Ferreira Santos, professor titular do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil – STBNB –, onde leciona filosofia e teologia desde 1978. Recife, janeiro de 2019.   

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