O QUE O DIZER DO DOM
PRETENDEU DAR
Drance Elias da Silva
PPGCR\\UNICAP
07\\02\\2019
Dom Helder Câmara teve paixão pela palavra. Ele sabia da importância da sua circularidade e por isso, a dava de forma gratuita. Em meio às adversidades que a vida em seus contextos nos impõe, esgrimir bem a palavra não tem arma melhor. Dom Helder sabia da força com que a palavra risca a carne como corte possante de uma faca:
Eu gosto muito de problema… Eu gosto até de oposição. Mas contanto que haja lealdade, um jogo limpo, um jogo claro…[1]
A lealdade, como apelo da palavra que se dá, obriga o outro a ser cúmplice da sinceridade. Não se pode fugir da palavra, pois o teor da sua verdade revoluciona, porque liberta o que o dizer pretende dar. A palavra que obriga chamando o compromisso é sinal de que ela abre a possibilidade de uma relação. Nunca conseguiremos ouvir nosso inimigo e vice-versa, se não aceitarmos que antes de tudo, é a palavra que tem de estar posta à mesa. É a única arma possível sob a qual ambos devem se render. Perde a guerra quem nunca se rendeu à força da palavra:
Quando nós chegamos ao cemitério, eu recebi um aviso que, se no cemitério houvesse a menor palavra contra os militares, a palavra de ordem era reagir de vez. Aí, quando terminou o enterro, eu disse: meus irmãos, tudo o que nós deveríamos fazer pelo nosso querido padre Henrique, fizemos. Vamos fazer mais um pai nosso e vamos fazer uma experiência que nunca foi feito aqui na nossa terra. Vamos oferecer a homenagem do silêncio. Vamos sair do cemitério sem nenhuma palavra, silêncio profundo; vamos oferecer esse silêncio. Nunca eu vi um silêncio tão impressionante! Era um silêncio que gritava (D. HELDER, O pastor da liberdade – Documentário Chesf\\Governo Federal, s\\d).
O silêncio que Dom Helder pede ao povo no momento do enterro do Pe. Henrique – no cemitério do bairro da Várzea – na realidade, é que se mantenham como quem é dono da palavra que se dá porque ela obriga. D. Helder pede o silêncio porque este em sua profundidade é palavra, é denuncia, é grito, é poder. E mais: irradiaria toda a cidade obrigando o povo a se manter firme nos propósitos da liberdade.
O silêncio era por ele mesmo uma fala que se podia através dela fazer coisas, pois o tipo de silêncio proposto se tratava de um dizer. Dom Helder sabia que o silêncio como um poder-dizer demonstra capacidade do agir humano. O silêncio que se pronuncia era autodesignação dos sujeitos que ali estavam naquela situação. Eles assim se reconheciam e se reconfortavam da ação que se esgrimia, pois, a palavra sugerida através do silêncio era a única forma de segurança possível. Um silêncio sem dizer nada seria o mesmo que morrer. E ali, ninguém estava para morrer, mas para se lembrar. O silêncio convocava todos a ser um carregador de lembranças. Foi do silêncio proposto por D. Helder que o Pe. Henrique não seria esquecido, apagado da experiência memorial de um povo oprimido, perseguido e injustiçado. Assim, “Oferecer a homenagem do silêncio” é dar de si ao outro.
Dom Helder disponibilizou seu tempo e sua pessoa na entrega do amor de Cristo, que foi entrega de respeito profundo ao outro necessitado: “tudo o que nós deveríamos fazer pelo nosso querido padre Henrique, fizemos”. Ter feito tudo é uma entrega. Um ato livre de associação com o outro e pelo outro. A morte fazia-se símbolo e como tal instaurava vínculo com as lutas sofridas do povo.
D. Helder como religioso sabia do poder da associação. Do poder do associar-se. O acordo do silêncio profundo, do silêncio que gritava associava todos a um sentido: o sentido do indignar-se. O acordo proposto pelo Dom e assinado em seguida por meio de uma oração, revela, sem sombra de dúvidas, que indignar-se é, sobretudo, associar-se a uma causa.
Como pastor, D. Helder sabia que a mensagem cristã tem como pressuposto o amor à pessoa humana, daí se deixar pautar por uma ética religiosa que se fundamenta na relação com o outro. E o outro a quem se deve amar está nas relações familiares, nos pobres que não têm o que comer e no estrangeiro. Na visão cristã do amor ao outro significa não oprimir, não roubar, pagar salários justos, ter compaixão pelo humano em suas necessidades.
D. Helder em seu pedido convocava a todos à causa dos oprimidos e dos injustiçados, pois era destes o grito explícito que emanava do silêncio e que de tão forte, o impressionou. O silêncio do Dom como forma estratégica para todos manter-se na indignação, expressava um pacto associativo: deve-se dar o silêncio pelo compromisso incondicional com o outro, e que deve ser vivido em comunidade.
O silêncio que se pede como algo que se dá funda, no sentido mais fundamental, uma aliança em torno da justiça, pois a vida mesmo que tenha sido tirada pela violência mais sórdida e covarde, é ela que prevalece como um moto continuo.
Dom Helder, portanto, sabia da força que transbordaria do laço através do silêncio, e que este riscaria impacientemente a dor. Naquele momento, contexto bastante difícil, a consciência religiosa do Dom pedia a todos que permanecessem firme no amor, no direito e na solidariedade. Ei o que o dizer do Dom pretendeu dar: o silêncio que se fez palavra para que nunca mais ninguém esqueça.
[1]Cf. Dom HERDER CÂMARA O pastor da liberdade– Documentário produzido em parceria Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) e Governo Federal do Brasil, s\\d.
2 comentários sobre “TEXTO DE DRANCE ELIAS DA SILVA EM HOMENAGEM A DOM HELDER”
Pessoal do IDHeC e Drance O silêncio fala, faz pensar, ajuda a amadurecer. Texto provocativo nos tempos de travessia que estamos. Sigamos firmes na luta.
Parabéns Drance és um estudioso da história de D. Hélder e a força que este relato de vida nos move até p/q nos pertence nos contornos da nossa opção pelos pobres no Evangelio dos pobres com os pobres