UM OLHAR SOBRE A CIDADE: A ARTE E A REALIDADE

 
 
 
 
 
Quinta-feira, 30.7.1981
 
Meus queridos amigos
 
Um dia, ricos que só se deslocam de aviões e de carros riam de Portinari porque em seus quadros e telas os pobres aparecem com pés enormes. O artista teve sensibilidade para traduzir as caminhadas sem fim de nossa gente sofrida.
 
Deste mesmo Portinari, lembro-me de um quadro de São Francisco de Assis que ele criou para uma igreja que teve grandes dificuldades de ser aberta ao culto. São Francisco aparece como um gigante e com uma das pernas aparecendo músculos e até uma parte do osso.
 
Em volta do quadro, havia comentários terríveis, descobrindo no pintor intenções de cobrir o santo de ridículo.
 
Como pintar São Francisco a não ser como gigante, quando diante dele todos somos anões e pigmeus? A perna com músculos e osso aparecendo, longe de ser criação de quem quisesse expor o santo ao ridículo, era criação de quem sente ou pressente que não é fácil ser santo. De vez em quando salta pedaço de carne, ficam músculos e até ossos aparecendo.
 
O Papa Paulo VI era sensibilíssimo a literatura e as artes. Uma vez, durante um Sínodo de Bispos de Roma, ele convidou os padres sinodais para visitarem uma exposição de pinturas e esculturas modernas sobre o Cristo. Muitos padres sinodais não estavam preparados para apreciar devidamente a pintura moderna. Havia risos diante de quadros que pareciam, segundo os visitantes, ridículos, e havia revolta diante de esculturas que pareciam feitas para zombar de Cristo.
 
Chegou o Santo Padre e parou, cuidadosamente, diante de cada pintura e de cada escultura. Paulo VI tinha sensibilidade de sobra para saber que o artista tem antenas para captar as alegrias e as tristezas, as esperanças e os desesperos de seu tempo.
 
Quando alguém está sofrendo, é ou não verdade que Jesus Cristo está nele? Nos nossos tempos em que mais de 2/3 da humanidade se acham em condições sub-humanas, de miséria e de fome, como pode um artista pintar um cristo lírico, plácido, o meigo Rabi da Galileia, de que tanto falava, entre outros, Eça de Queiroz?
 
O Papa deu, sem palavras, pelo exemplo, uma aula viva de  compreensão da criação artística. Quadros e estátuas que pareciam grotescos passaram a ser vistos como visão angustiantemente humanas, e carregadas das angústias, as aflições e amarguras de nossa gente sofrida.
 
 
 

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