Quinta-feira, 1.4.1982
Meus queridos amigos
Há pessoas que não podem subir um degrau, que se embriagam. Não se podem vestir como princesas porque não voltam mais à condição a que pertencem. É a grande lição de Chico Buarque de Holanda, em sua canção imortal: Quem te viu e quem te vê.
“Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala
Você era a favorita onde eu era mestre-sala
Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua
Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua
Hoje o samba saiu, procurando você Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece não pode reconhecer
Quando o samba começava, você era a mais brilhante
E se a gente se cansava, você só seguia adiante
Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado
Você só dá chá dançante, onde eu não sou convidado
O meu samba se marcava na cadência dos seus passos
O meu sono se embalava no carinho dos seus braços
Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão
Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão
Todo ano eu te fazia uma cabrocha de alta classe
De dourado te vestia pra que o povo admirasse
Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia
Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria
Quero que você assista na mais fina companhia S
e você sentir saudade, por favor não dê na vista
Bate palmas com vontade, faz de conta que é turista”
Ninguém se espante de eu recitar de ponta a ponta uma das mais sentidas canções do querido Chico. Será que exagero quando acho que aí dentro há lições para todos nós?
Como é fácil a gente se vestir de princesa, vestir-se de rico, de sábio, de santo e acostumar-se na fantasia…
Quanto pobre chega ao céu e ainda se imagina vestido de mendigo, sem dinheiro, sujo de roupa e de corpo, talvez arrastando um pouco ou trazendo uma muleta, esquecido que o espetáculo da Terra terminou.
Na Casa da Eternidade seremos o que fomos diante de Deus. O dinheiro único que tem valor é o bem praticado nesta vida.
O melhor do samba — Deus permita que seja assim na vida — é a ausência de mágoa ou de vingança da parte de Chico.
Se ela vier assistir ao samba e sentir saudade, Chico é o primeiro a pedir que ela não se traia, se contenha, para não dar na vista: bata palma com vontade, fazendo de conta que é turista…
Que Deus nos ajude a ser quem somos e na hipótese de subirmos, mesmo que não seja apenas um degrau, mas a escada inteira, continuemos a ser nós mesmos, sem perder a cabeça, sem embriagar-nos e acostumar-nos na fantasia!