Meus queridos amigos
04.01.1980
É bastante conhecido que as embarcações a vela ou mesmo barcaças a vapor costumavam carregar, na proa, esculturas de madeira, muito apropriadamente chamadas de carrancas. Eram esculturas de fisionomias capazes de espantar. A intenção era esta mesma: de espantar maus olhados ou até gênios maléficos, moradores de rios, e que pretendessem fazer mal aos navegantes.
Hoje, a superstição talvez persista em alguns dos heroicos brasileiros que enfrentam mar alto em embarcações muito precárias.
Mas as carrancas viraram folclore. Onde há artesanato de madeira, há sempre carrancas numerosas, algumas com indiscutível senso artístico.
Um amigo, de meio social bastante elevado, ganhou uma carranca. Ou faltou compreensão para o presente recebido, ou houve medo de espantar os netinhos: meu amigo passou a carranca adiante.
Mas doou a um amigo pobre, bastante inteligente para medir o valor da carranca; mas sua casa, muito humilde, não comportava carranca nas dimensões da que recebeu de presente. E o amigo pobre acertou de cheio, passando a carranca a um terceiro amigo, que, não só avalia a importância artística da carranca recebida, mas dispõe de casa ampla, com lugar adequado para ela…
Muitos talvez achem estranha esta história de carranca… E, no entanto, é tão comum encontrar pessoas, até educadas, até finas, mas que não podem ser contrariadas: qualquer calo pisado, qualquer mania contrariada, qualquer espera mais prolongada, e a carranca é armada em pleno rosto. Conheço até pessoas bonitas, mas que, por nada, e, até por nada de nada, armam cada carranca, como jamais encontrei em nenhuma barcaça do São Francisco.
Vamos, neste início de 1980, ter a coragem de uma busca de regra, para descobrir quantas carrancas carregamos em nossos porões interiores! Uma jovem amiga, muito inteligente, relatou-me quantos tipos de carrancas guarda em seu intimo: carrancas de ódio, carrancas de desprezo e carrancas de ironia.
Seria ideal guardar olhos, admiração e estima pelas carrancas trabalhadas por nossos artesãos… Quanto a carrancas de ironia, de frieza, de desprezo, de ódio que estejam em porões internos, nem preciso dizer que destino elas merecem. A menos que sejamos capazes do prodígio de levar nossas carrancas a desarmar-se e a sorrir…