Crônica escrita por Dom Helder para o programa de rádio UM OLHAR SOBRE A CIDADE – Sábado, 27.8.1977
Meus queridos amigos
A primeira vez que o homem cantou houve pesado silencio no mundo das aves. Dizem que os pássaros se espantaram mais ouvindo melodias de lábios humanos do que mesmo, mais tarde, quando encontraram, nos ares, homens voando em gigantescos pássaros de aço.
Ouvindo pela primeira vez melodias de lábios humanos, por que silenciaram os pássaros? Surpresa, por pensarem que gorjeios eram monopólios das aves? Silenciaram por despeito, ou porque se encheram de medo, ou pararam para partir depois para o desafio e a competição?
É curioso: pensamos em canto de pássaros quando ouvimos uma bela voz humana! Na Europa se diz logo: esta criatura até parece que tem um rouxinol na garganta! Por aqui, pensamos logo em sabiá ou em patativa.
Há quem imite a voz dos pássaros de modo tão perfeito, a ponto de os próprios pássaros se enganarem… O que é fora de dúvida é que a voz é divina. O canto é um privilégio maravilhoso. Há pessoas, cujo coração, cuja alma, cantam, mas lhes falta o dom do canto.
É impressionante e confortador como os jovens gostam de música e, especialmente, de cânticos. Ficam horas inteiras ouvindo seus cantores prediletos. Pode perfeitamente acontecer que os cânticos e as melodias da preferencia da Jovem Guarda não casem bem com melodias e cânticos de preferencia de nós adultos, sobretudo dos que estão vivendo o outono ou, quem sabe, o próprio inverno da vida.
Fico feliz vendo o meu povo cantar. Sobretudo porque os artistas tem antenas. Captam os sentimentos do tempo em que vivem. Em tempos calmos, serenos, harmoniosos, as artes — inclusive a música e o canto — surgem luminosas, serenas e calmas. Em tempos difíceis, de sofrimento, de opressão, o canto tem que ser intérprete do que se passa na alma e no coração de nossa gente.
Pode até, as vezes, parecer que os cânticos e os músicos estão provocando, pretendendo agitar, subverter. A angústia, o sofrimento, não são criados pelos artistas: são captados e sentidos por eles. Se alguém merece censura não é quem canta, como não é quem expressa em ritmo a situação infra-humana de nossa gente sofrida.
Preocupante, criadora de problemas é a carestia de vida e a fome que vem atrás. Preocupante, criador de problemas é o desemprego.
Nem preciso citar outras preocupações, porque elas estão gritando aos nossos ouvidos.
Ora, há uma diferença entre o canto dos pássaros e o canto humano. O pássaro, mesmo estando prisioneiro, em gaiolas, ou doente, ou com fome, se cantar, é o canto de sempre. O canto do homem entra em sintonização quase inevitável com os sentimentos do povo. Dizia-se aqui, como em toda parte: “Quem canta, seus males espanta”.
O Nordeste prefere dizer: “Quem canta, seus males enfrenta!” Se não der para entender, talvez de para pensar…
* Esta e mais outras 199 crônicas escritas por Dom Helder Camara, especialmente para o seu programa UM OLHAR SOBRE A CIDADE, podem ser encontradas no livro MEUS QUERIDOS AMIGOS.
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