Em comemoração à criação da Cruzada São Sebastião postamos aqui este texto, publicado na edição especial do JC Online, por ocasião do centenário de nascimento de Dom Helder Camara, em 2009.
No Rio de Janeiro, então capital federal, dom Helder criou, na década de 50, a Cruzada São Sebastião para urbanizar favelas e o Banco da Providência.
Ao término do 36º Congresso Eucarístico Internacional, realizado no Rio de Janeiro, em junho de 1955, o então cardeal francês Pierre Gerlier fez um comentário que deixou o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, dom Helder Camara, inquieto: “Não entendo como vocês realizam um congresso tão organizado e bonito e não conseguem acabar com as favelas da cidade”. As palavras do francês incomodaram e estimularam dom Helder a fundar, quatro meses depois, a Cruzada São Sebastião, um projeto ousado que pretendia urbanizar as favelas cariocas. A atitude do bispo reforçava sua opção de lutar pelos pobres e desfavorecidos. Embora a meta não tenha sido alcançada, ao menos uma favela deixou de existir e outras receberam melhorias como redes de água e esgoto, energia elétrica e escadarias. Graças à articulação e influência do religioso, construiu-se um conjunto residencial de dez prédios, no nobre bairro do Leblon, na Zona Sul, que se transformou em residência para as famílias da extinta Favela da Praia do Pinto, cuja área foi ocupada posteriormente por um condomínio de classe média.
Na Cruzada São Sebastião vivem atualmente, nos 986 apartamentos, aproximadamente quatro mil pessoas. Boa parte de descendentes das famílias que receberam os imóveis na época de dom Helder ainda mora no local. “Cheguei no terceiro dia de mudanças, em 17 de janeiro de 1957, às 10h40, com marido e três filhos. Morávamos num barraco sem água nem energia”, relembra a aposentada Regina Cardoso, 81 anos. Costureira e lavadeira, ela não imaginava sair da favela. “Dom Helder foi um homem de Deus, uma pessoa que se preocupou com os pobres. Só ele mesmo para pensar em construir apartamentos para favelados. Um sonho impossível até então”, diz Regina, hoje mãe de seis filhos.
A construção do conjunto não foi simples. Durou seis anos. Mas dom Helder conseguiu convencer pessoas das mais diversas áreas a se engajar na empreitada. Durante a organização do Congresso Eucarístico, aproximou-se dos presidentes da República (Getúlio Vargas, até agosto de 1954, quando se suicidou, e Café Filho, seu sucessor). Também das Forças Armadas. Por isso, da União, o então bispo conseguiu a doação do terreno no Leblon. O dinheiro para iniciar a obra, em janeiro de 1956, veio da venda de lotes de outro terreno, cedido pela Marinha. Quatro grandes construtoras formaram um consórcio e participaram da construção, cobrando valores simbólicos. O primeiro edifício ficou pronto 12 meses depois.
A Cruzada chama a atenção por estar encravada em um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro. Nem sempre é fácil para os humildes moradores do conjunto conviver com o preconceito de famílias mais abastadas que vivem na vizinhança. Mas o maior desafio atualmente é vencer o tráfico de drogas, que, aos poucos, toma conta do lugar, apesar de haver uma delegacia a poucos metros do condomínio, em frente à Paróquia dos Santos Anjos. O risco de favelização é iminente. “Enquanto houve a tutela da Igreja, a Cruzada era organizada. Quando os moradores passaram a ter a posse dos imóveis, no início da década de 80, começou a desorganização”, observa o padre Marcos Belizário.
AJUDA A QUEM PRECISA – Quatro anos depois do lançamento da Cruzada, o bispo fundou mais uma obra que resiste até hoje: o Banco da Providência, que completa cinco décadas em 2009. Sem negar ajuda a quem o procurava, dom Helder era alvo dos mais diversos pedidos, de roupa a emprego ou comida. Teve a ideia, então, de criar um banco para atender ‘os enforcados’ ou os ‘desesperados’ que não tinham acesso aos bancos tradicionais. Contou com a ajuda de centenas de pessoas, que fizeram doações e trabalharam voluntariamente. Hoje o banco atende uma média de 40 mil pessoas por ano. Os seis programas que desenvolve são chamados de agências. A principal fonte de financiamento é a Feira da Providência, realizada uma vez por ano desde 1961.
A artesã Cleide Silva, 42, o cozinheiro Jurandir Nascimento, 49, e o desempregado Paulo de Jesus, 37, são algumas das pessoas beneficiadas pela entidade. Cleide conseguiu realizar o sonho de comprar a casa própria depois de ter participado das Agências de Família. Com o dinheiro das bolsas que aprendeu a confeccionar, ajudou o marido na aquisição do imóvel. O pernambucano Jurandir foi recebido, em 1980, pela Agência Comunidade de Emaús, que acolhe moradores de rua, ex-presidiários, dependentes de drogas e alcoólatras. Aprendeu uma profissão e hoje é funcionário da entidade.
Para Paulo de Jesus, o socorro veio da Agência SOS. Recém-saído da rua, onde morou nove anos, foi ao banco pedir uma cesta básica. “Já vim outras vezes. Quando estava doente, consegui remédio e roupa. Outra vez, cortei o cabelo. Agora, preciso de comida. Aqui é o único lugar que não tem discriminação. Pobre, gente de qualquer raça ou religião é atendido igualmente, como fazia dom Helder. Seria maravilhoso que todo mundo fosse só um pouquinho igual a ele”, sonha Paulo de Jesus.
Fonte: http://www2.uol.com.br/JC/sites/sementesdodom/dom_da_providencia.html