Hoje, 27 de setembro, é o dia de São Vicente de Paulo. O nosso amigo João Pubben, nos envia, diretamente da Holanda, este texto, que, ao lado de São Francisco, São Vicente era um dos grandes santos para Dom Helder.
No dia 9 de setembro de 1992 Dom Helder escreveu: “O que eu sei e o que faço, devo, em grande parte, aos Padres da Missão. Daí a amizade com que acompanho meus Mestres de ontem e de sempre. O que eles dizem e fazem têm raízes na fé, na oração, sobretudo na Santa Missa. Que Deus abençoe, sempre mais, os Filhos e as Filhas de São Vicente”.
O Seminárioda Prainha em Fortalezaestava sob os cuidadosdos Lazaristas quando Helder, em 1923, entrou. PadreGuilherme Vaessen era, já desde 1914, superior, permanecendo na funçãoaté 1927, quandoo Padre Tobias Dequidt assumiu o posto. Este, então, era reitor em 15 de agosto de 1931, diada ordenação sacerdotal de Helder e de seus colegas de turma Francisco José de Oliveira, Domingos Rodrigues de Vasconcelos, Demétriu Eliseu de Lima, Antônio de Oliveira Nepomuceno, José Gaspar de Oliveira, Luiz Braga Rocha, Pedro Alves Ferreira e Antônio Bezerra de Menezes.
O Domfalava, já bemidoso, aindasobre seutempo de seminárioe lembrava com respeitoseus professores. Lugar privilegiado ocupava Padre Pedro Zingerlé. Estemudou-se da França para o Brasil em 1902 e viveu no Seminárioda Prainha até 1968, vindo a falecer na idade de 93 anos. Zelava pela“Obra das Vocações” que financiou emparte a formaçãode Helder, já queseus paisnão tinham condiçõesde pagar a quantiatoda, conformeo Dom, comgratidão, mecontou diversas vezes.
Helder pensou emse tornar Lazarista, masPadre Tobias aconselhou a opção para o sacerdócio diocesano. Pessoalmente gostaria eu, ainda hoje, de descobrir o porquê desta sugestão. Intranquilidade a respeitodo futuro do jovemcearense? Alguma motivação nesse sentido nãocausaria estranheza!
Ao longode toda a suavida Helder cultivou uma amizade especialpara com dois grandes cristãos. Durantea homilia da Missado trigésimo diade seu falecimento, em sua Igrejadas Fronteiras no Recife, eu disse: “Helder Camara é uma tradução brasileira, em nossaépoca, do italiano Francisco de Assis do século XIII e do francêsVicente de Paulo do século XVII”. Todos nóssabemos que Vicente emseu tempose aproximou de maneira nova dos pobrese dos padres. Certamenteé do conhecimento de leitoras e leitores que Dom Helder, na segundaparte do séculoXX, procurou fazer o mesmo.
No inícioda Eucaristia quecom muitas pessoascelebramos no sétimo dia de sua partida, 2 de setembrode 1999, em suaprópria Igreja, recordei que a celebraçãodo início do tricentenárioda morte de SãoVicente, em 18 de julhode 1959 no Rio de Janeiro, foi o começo do processoque trouxe DomHelder finalmente (apósuma oferta de Salvadorda Bahia e uma nomeação para SãoLuis do Maranhão) como arcebispo – digamos simplesmente“Bom Pastor” – em Olinda e Recife. Foi exatamente pormotivo de suanova visãoem relaçãoàs irmãs e aos irmãospobres.
A “Association DomHelder Camara” fundada em outubro de 2000 emParis para manter vivas a memóriae a atualidade do Dom, promove em várias cidadesda França uma exposição e, emum grandepainel, pode-se leresta história, emsuas próprias palavras.
“Certodia celebrava-se uma festa de SãoVicente de Paulo e eu devia fazer a homilia em honra do Santo. Aproveitei a ocasiãopara apresentar o que eu pensava a respeito dos problemassociais. Procurei dizerque o importantenão é recordaro que Vicente de Paulo tem feito; isto já é bastante conhecido e elenão precisade nossos elogios. Tentemos, ao invés, refletir: o que faria SãoVicente hoje? Quaisseriam as principais manifestações de suacaridade? Aíeu disse: a caridadede São Vicente hojeseria bater-se pela justiça”.
Após essa pregação houve uma conversaentre o arcebispodo Rio de Janeiro, Dom Jaime de BarrosCâmara, que tinha presidido a Eucaristiacomemorativa, e seu bispoauxiliar, nossoDom. O cardealachava melhor queos caminhos dos doisse separassem.
O Domme contou esta históriaem 1987, quandose tornou membro agregadoà Congregação da Missão. Ainda vejo o brilhoem seusolhos naquele momento…
Dom Helder é o mais conhecido entre os quase160 ex-alunos dos Lazaristas que, no Brasil, se tornaram bispos. Foi sagrado no Rio de Janeiro no dia20 de abril de 1952.
Em 30 de julho do mesmo ano, dia em quecompletava 60 anos de vida vicentina, padreGuilherme Vaessen escreveu, na Casa das Missões em Fortaleza, a dedicatóriade seu livro“Retiro para sacerdotes segundoo espírito de SãoVicente de Paulo”. Começa ele assim:
“Ilmo. Exmo. SenhorDom Helder Camara,
Dai-me vossasanta bênção.
É a VossaExcia. Revma. que dedica estas humildes páginasaquele que, já há cincolustros, teve a satisfaçãode acompanhar, comoreitor do Semináriode Fortaleza, o desabrocharde uma bela inteligênciae grande coração, de que hojea Igreja católicae a Pátria brasileiracolhem os frutos benéficose saborosos”.
E o escritortermina da seguinte forma:
“A bênçãode V. Excia. Revma., unida à da Virgem Imaculada, compensará as imperfeições e as fraquezas(desse livro) e as transformará em valor. Seja permitidoacrescentar queos Sacerdotes e Religiososque porventuralerem estas páginas, hão de apreciar imensamenteo encontrar à primeirapágina do nomequerido e venerandode quem consagra, comoVossa Excelência, ‘corde magno et animo volenti’, todo o seu amor e atividadeà Igreja de Jesus Cristo. Digne-se V. Excia. Revma. aceitar a expressão dos meusprofundos sentimentosde respeito e gratidão”.
Padre Guilherme Vaessen faleceu no início do ano no final do qual eucheguei ao Brasil, 1965. Portanto, conheço-o somente de ouvirfalar. Mastenho a impressão queele, quantoa Dom Helder, demonstra visão acertada.
Os primeirospadres ordenadospor DomHelder foram seis Lazaristas brasileiros. Quemabre o sexteto é bastanteconhecido na Provínciade Fortaleza: padreArgemiro Moreira Leite, com quemMartinho Groetelaars colaborou na Ilha de Itaparica no estado da Bahia, nosanos 70 do séculopassado, e quemorreu repentinamente em 29 de junhode 2000. O pai de umdos candidatos ao sacerdóciotinha sido colegade Helder no Seminário de Fortaleza. Eisa razão quefez com queo Dom presidisse a ordenaçãoem Petrópolis no dia28 de setembro de 1958. Já contava maisde seis anosde bispo; antes, porém, o cardealJaime de Barros Câmaranão consentiu emele ordenar padres.
No dia8 de abril de 1987 DomHelder foi declarado membro agregado à Congregação da Missão. Em 12 de outubro do mesmoano elerecebeu, na capela da casa das Filhas da Caridadeem Socorro, o pergaminho queatesta este fato, entregue pelopadre Luiz de OliveiraCampos, na épocadiretor das Filhas da Caridade da Provínciado Recife. Diversas vezesele medisse depois: “Eusou Lazarista também!”
Em 8 de abril de 1997 comemoramos seus“dez anosde Lazarista” durante uma celebração doméstica. Nosso entãovisitador, padre Aluízio Pereira da Costa, se encontrava no Recife e veio com o jubilar, alguns amigos e comigocelebrar a Eucaristia. O Dom apreciava muitoa beleza das rosas. Comprei, portanto, dezlindas rosas, quecolocamos, com gratidão, no meio da mesaem tornoda qual estávamos sentados. Ainda vejo o olhar amoroso do Domse dirigindo àquelas flores…
Por sugestão de nossoirmão Geraldo Frencken, Dom Helder, duranteo encontro dos visitadores da Congregação entre 12 e 17 de julho de 1989 no Riode Janeiro, concelebrou com eles a Eucaristia e lhesofereceu uma conferência. Geraldo escreveu na noite daquele dia 14 de julho: “Todos estavam bementusiasmados e contentes com esse ponto alto de nosso encontro”. Lembro-me que fui recebero Dom no aeroportodo Recife, quandode sua volta. “Foi muito agradávelestar com os filhos de Vicente”, disse ao desembarcar.
Na época em que seminaristas de nossaCongregação viviam no Recife, o Dom aceitou porduas vezes umconvite meu para visitá-los no bairrode Apipucos. No dia 9 de fevereiro de 1989 elefez a abertura de umretiro comoo tema: “A Oração” e, em 11 de agostode 1993 falou no início de um dia de reflexão sobre“São Vicente”.
No dia2 de setembro de 1999 realizou-se, no Senado da Repúblicaem Brasília, uma sessãoem homenagemao Arcebispo Eméritode Olinda e Recife. Na memória da solenidade pode-se ler: “Aos quatroanos de idadejá demonstrava especialinteresse pelavida religiosa, sob a influênciados padres Lazaristas que atuavam na arquidiocesede Fortaleza naqueles tempos”. Parece umpouco exagerado! Mas, é certo quepadres Lazaristas marcaram a vida de nosso Dom.
E, se foi parapadre Guilherme Vaessen uma satisfação observar o desabrochar de sua vocação, para mim foi um privilégio acompanhar bem de perto o coroamento da mesma e, juntamente com três padres diocesanos brasileirose a senhora quedurante trinta e cincoanos e doze diasfoi sua secretária, zelar pela despedida terrestre do Dom conforme declaração em cartório, de 20 de maiode 1998, no Rio de Janeiro. Essa providência tinhasido tomada paraevitar quese organizasse uma despedida soleníssima que duraria váriosdias, o quecertamente nãoseria conforme o desejodo falecido.
Dom Helder Pessoa Câmara vive, para sempre, no silêncio de Deus!
Pode ser útil, sobretudo para Lazaristas, mas também para outras leitoras e outros leitoresrefletir sobreo que eledisse no final de uma meditação sobreSão Vicente emum programade rádio no diados 315 anos de suamorte, 27 de setembrode 1975:
“Queo Espírito Divinosopre sobre todosos que lidamos coma pobreza, paraque sejamos ao menosuma sombra da sombrado grande e queridoSão Vicente de Paulo”.
João Pubben