UMA PERSONALIDADE ÍMPAR

* Nara Lúcia

Era criança quando vi dom Helder Camara pela primeira vez, na calçada dos Correios, sendo cumprimentado por muita gente. Soube então que ele era um bispo, que alguns chamavam de comunista porque criticava o governo. Não sabia o que era comunista e muito menos que o governo era a ditadura militar, que prendia e torturava quem dela discordasse. Adolescente, voltei a ouvir seu nome quando padre Henrique Pereira Neto, seu colaborador, foi assassinado. Era maio de 1969. Passava pela Matriz do Espinheiro, no dia do velório, e ouvi comentários de que dom Hélder estava na igreja comandando a cerimônia e que certamente ia haver confusão.

Um bispo popular e corajoso. Foi assim que aprendi a ver dom Hélder. Os anos se passaram, comecei a estudar jornalismo e, como era de se esperar, a trabalhar num jornal. Era o final dos anos 70 e eu uma repórter do Jornal do Commercio, mais setorizada em Igreja, leia-se, em dom Hélder. E como era bom fazer matéria com ele, um bispo que falava sobre tudo, principalmente sobre o momento político, relacionando-o sempre com o Evangelho, com os ensinamentos do Pai, como ele se referia a Deus.

As entrevistas, no Palácio dos Manguinhos, eram numa mesa enorme. Perguntava-se o que queria e nada ficava sem resposta. Houve uma época em que ele, persona non grata para a ditadura militar, ficou mais cauteloso. Pedia aos repórteres que escrevessem as perguntas, para respondê-las de próprio punho. Temia que suas palavras pudessem ser mal interpretadas, já que os repórteres, em quem dizia confiar plenamente, não eram donos dos jornais.

Em qualquer lugar, a presença de dom Hélder era notícia, porque ele sabia transformar em notícia o que dizia e fazia. Seus sermões, principalmente na Procissão dos Passos, eram um alento para a multidão e belas matérias para os jornalistas. Estava sempre defendendo o mais fraco e oprimido e mandando um recado às autoridades de plantão. Os repórteres ficavam eufóricos.

Mesmo com a aposentadoria, dom Hélder continuou notícia. Afinal, era uma personalidade conhecida internacionalmente. E recebendo, com a mesma boa vontade, os jornalistas, só que na Igreja das Fronteiras, onde morava. O contato com a imprensa só foi diminuindo quando os lapsos de memória começaram a dar sinais. Felizmente isso aconteceu muito tarde, quando nós, repórteres, já havíamos aproveitado muito de seu convívio, de sua inteligência.

* Nara Lúcia foi repórter do Jornal do Commercio. 

Este artigo foi publicado no JC um dia após a morte de Dom Helder, em 1999
Texto publicado em 2009, no JC Online, durante as comemorações do Centenário de Nascimento de Dom Helder Camara.

http://www2.uol.com.br/JC/sites/sementesdodom/artigos.html

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