QUEM É O MEU PRÓXIMO?

\”E quem é meu próximo? Jesus, prosseguindo, disse-lhe: ‘Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu em mãos de salteadores que após havê-lo roubado e espancado, foram-se deixando-o semimorto. Casualmente passava por ali um sacerdote que, vendo-o, seguiu adiante. O mesmo ocorreu com um levita, que vendo-o, prosseguiu caminho. Mas um samaritano, que viajava, passou por perto e, vendo-o, apiedou-se dele. Aproximou-se, cuidou de seus ferimentos derramando sobre eles óleo e vinho, depois colocou-o em sua própria montaria e o conduziu a uma hospedaria, dispensando-lhe seus cuidados. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, recomendando-lhe: ‘Cuida dele, e o que gastares a mais em meu regresso te pagarei’. Qual dos três, em tua opinião, te parece o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Ele respondeu: ‘Aquele que usou de misericórdia para com ele.’ Jesus então disse: ’Vai, e faze o mesmo tu também’\” (Lucas 10, 29-37).
Nós padres e bispos, quando temos de pregar sobre a parábola do Bom Samaritano, frequentemente nos vemos perturbados pela coragem com a qual Cristo se refere a um sacerdote que vê a vítima ferida e segue indiferente o seu caminho… Apressamo-nos, então, em explicar que se tratava de um sacerdote daqueles tempos remotos, seguidor da Lei antiga, como se nós, padres de hoje, tivéssemos melhores olhos para ver, e mais tempo para cuidar dos pobres! Ah! Senhor, como nos conheces bem! Vivemos cada vez mais apressados, temos sempre problemas importantíssimos a resolver, e, de resto, não podemos, mesmo, cuidar de todo mundo! Além disso, quem nos garante que um pobre, seja pobre mesmo, e não um impostor que explore a caridade alheia? É muito fácil, mesmo não o querendo, deixar de ver a pobreza, a miséria…
Acontece, no entanto, que numa cidade grande como aquela que moro é igualmente fácil encontrar não apenas mulheres e crianças, mas homens adultos, também procurando alimento nas latas de lixo…. Basta-nos ir a pé pelas ruas, pois andando sempre em automóveis rápidos, rápidos demais, não se tem tempo para ver de perto, para tocar a miséria!
Lembro-me de certa vez que me convidaram para a inauguração duma grande empresa. Era um dia de intenso calor, mas os escritórios dos diretores tinham o conforto dos aparelhos de ar-condicionado. Os garçons passavam travessas e mais travessas com garrafas de uísque. Uma, duas, muitas vezes. Eu tomava apenas refrigerantes – não por virtude excessiva, pois até gosto de um pouco de vinho, o que não me causa qualquer problema de ordem moral – porque o álcool parece não gostar de mim…  Em dado momento, um dos convidados se aproxima e, grosseiramente, me diz: \”Ora, ora, Dom Helder! Como é que vai sua demagogia? O Senhor ainda tem coragem de dizer que vivemos cercados de fome e miséria aqui em Recife?\” Outras pessoas juntaram-se a nós, encorajados por aquela provocação e querendo prossegui-la. Eu respondi a todos, em alto e bom som: \”Vejam só! Eu estava tranquilo no meu canto, mas vocês preferiram provocar-me… Pois eu lhes garanto que se sairmos todos nos belos carros que vocês têm, em poucos minutos eu os mergulharei num ambiente da mais terrível fome e miséria…
Para surpresa minha, aceitaram o desafio. Em não mais do que dez minutos chegamos a uma sapucaia, um desses locais onde os serviços públicos despejam, e depois incineram, o lixo da cidade. Eu conhecia bem o local… chamei um conhecido, que é funcionário da Prefeitura e por ali trabalha. Ele tem, a propósito, o apelido de Doutor Lixeira… Longa experiência lhe ensinou a ver, no meio daquele lixo todo, o que é que ainda pode ser aproveitado como alimento. É ele quem estabelece a classificação: comida de primeira classe, que os funcionários da limpeza pública reservam para si mesmos; comida de segunda classe, boa ainda para as pessoas que nada têm do que viver e se alojam por ali, disputando o refugo com os urubus que ciscam como galinhas pretas; comida de terceira classe, que se coleta e guarda para vendê-la depois nas tendinhas de quarta ou quinta classe, onde qualquer coisa serve para encher a barriga daqueles que vivem encharcados de álcool…
O Doutor Lixeira explicou tudo isso, muito direitinho, às dezenas de chefes-de-empresa que me haviam acompanhado até ali. Tive a impressão de que marcara profundamente o meu ponto, ensinando-lhes uma dura lição… Mas qual! No dia seguinte, um deles me chama ao telefone, e diz: \”Dom Helder, que sujeito formidável aquele Doutor Lixeira! Ele tem muita iniciativa! Bem que poderíamos empregá-lo…\”
Foi terrível! Como estamos longe de ter o espírito do Bom Samaritano! Mas estou convencido de que ele, hoje, faria bem mais do quer dar assistência a vítimas de salteadores e de transportá-las a local seguro, não mais na sua montaria, mas no seu automóvel… Ele por certo se ocuparia de vítimas cada vez mais numerosas, que são as vítimas da injustiça. Ele estaria conosco para lutar, por meios pacíficos, mas corajosos, contra as estruturas impiedosas que esmagam e fazem sofrer a humanidade. Pois não basta socorrer as vítimas. É necessário atacar vigorosamente, antes de mais nada, as causas dessa inaceitável infelicidade.
(Do livro “O Evangelho com Dom Helder”)

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